quinta-feira, 30 de novembro de 2017

Elaboração do passado e literatura como resistência: a negação determinada do jornalismo hegemônico


Na próxima semana, durante o I Colóquio Nacional de Literatura, Revolução, Indústria Cultural e Biopolítica, eu e o Prof. Dr. Robson Loureiro apresentaremos o artigo "Elaboração do passado e literatura como resistência: a negação determinada do jornalismo hegemônico na sociedade excitada". Caso deseje acessar o artigo completo que será publicado nos anais do evento, entre em contato por e-mail.

quarta-feira, 29 de novembro de 2017

Café filosófico no Nepefil: A Revolução Russa e seus reflexos no Brasil


Organização e mediação: Prof. Dr. Robson Loureiro (PPGE/Ufes) / Prof. Me. Emerson Campos (Doutorando PPGE/Ufes) / Luiz Fernando Soares Pereira (Graduando História/Ufes).

terça-feira, 31 de outubro de 2017

Café filosófico no Nepefil: Intolerância religiosa no Brasil pós-golpe/16


Organização e mediação: Prof. Dr. Robson Loureiro (PPGE/Ufes) / Prof. Me. Emerson Campos (Doutorando PPGE/Ufes) / Luiz Fernando Soares Pereira (Graduando História/Ufes).

quarta-feira, 4 de outubro de 2017

Artigo sobre barbárie e luta de classes na Revista Vitória (ISSN: 2317-4102)


Já são quase quatro anos longe da reportagem e a cada novo texto finalizado - seja ele um artigo científico, ensaio crítico ou simplesmente uma aventura literária - constato como é bom escrever sobre o que acredito sem superficialismos ou brevidades (e aqui falo em termos de conteúdos, conceitos e gêneros). Talvez viva um jovem Marx, jornalista e materialista, cá dentro. Vai saber.

É nesse embalo que, em pleno dia de São Francisco de Assis, compartilho o texto que fui gentilmente convidado (agradeço a lembrança da Andressa Mian) a elaborar para a edição especial da Revista Vitória, da Arquidiocese de Vitória. Em tempos sombrios, com cartazes pregados em poste com sugestões de violência e barbárie (que sempre estoura nos segmentos mais pauperizados da classe trabalhadora), procurei misturar num só causo filosofia, política, cristianismo e ciências da comunicação para problematizar algumas questões. O texto está transcrito abaixo e também em pdf, mas sugiro a revista inteira, que está belíssima em conteúdo e forma (ó: https://goo.gl/KFXqrR).

***
O pão do ódio e o esquecimento: a vida-morte do menino Jesus

Como bom mineiro, permitam-me começar com um causo de enredo bem comum: menino pobre, filho de mãe trabalhadeira, final triste. Nada que nunca tenhamos ouvido dizer, não é mesmo?

Parte 01 – Meus becos, meu mundão.
O nome dele era Jesus. Nasceu bem longe das bandas capixabas, lá praqueles lados do Jequitinhonha. Mudou-se para um bairro humilde da Grande Vitória ainda pequenino e era tão acostumado com tudo ao seu redor que, em sua percepção de garoto de dez anos, não via muito sentido em imaginar um mundão maior que aqueles becos. Na verdade, Jesus só lembrava de ter ido a outro lugar ainda muito novinho, quando o pai, motorista, acabou morrendo em um acidente na não-duplicada-BR-101. Depois daquilo só saia mesmo dali para estudar em bairro quase-vizinho. “Sorte escola tão pertinho”, celebrava a mãe, de nome Maria, filha da finada Ana. A verdade é que Jesus não conhecia sequer o bairro de grã-fino da capital onde sua velha trabalhava na casa de uma gente “muito boa e caridosa” – que só não legalizavam a situação da moça por causa dessas coisas chatas de burocracia trabalhista. “É por isso que o Brasil não dá certo”, dizia a patroa exaltando as vantagens da flexibilidade enquanto pedia para Maria ficar com as crianças no fim de semana.

Parte 02 – Pulou a roleta, saltou no cruzamento.
Na mesa, Jesus nunca vira fartura, mas também não vira faltar nada com a multiplicação quase divina do meio salário da mãe. E Jesus, bom aluno ainda que de vez em sempre faltasse um professor ou outro, nunca precisou bater um prego. Devia se dedicar na escola para se formar “doutor”. As coisas até caminhavam, mas a vida não é uma linha perfeita. Sabe aqueles apertos de dar nó na gente? Maria descobriu que estava com câncer. Não tinha plano, entrou na fila do SUS e teve que parar de trabalhar. Sem carteira assinada, não recebia mais o meio salário (quiçá o seguro que nem sabia da existência). Com a coisa apertando, Jesus não segurou a onda e decidiu pedir ajuda. Pulou a roleta e saltou no cruzamento do bairro bacana, cheio daquela gente que parecia gringo. Foi ao semáforo pedir esmola. Os motoristas, porém, aos montes o acusavam: “negrinho malandro, querendo grana para o crack”. Ora ou outra também apareciam os justos que, levando a filha da aula de inglês para o ballet, lembravam: “ao invés de ir capinar um lote prefere ficar pedindo, não vejo problema de criança trabalhar, se não fosse vagabundo desde cedo (...)”.

Parte 03 – A bala de Jair, o patriota.
A esmola foi pouca. Com quase nada e a mãe mal, Jesus foi chamado para o movimento e começou a entregar coisa errada ou outra de cheiro engraçado. A grana começou a chegar, mas ainda era pouco. A situação apertou, a mãe piorou e ele decidiu ajudar a faturar um carro. “Um alemão cheio da grana que revende, a gente só pega e ganha o nosso”, garantiu o bom malandro, outro miserável. E lá foi o menino de dez anos ao encontro de Jair, patriota e conservador. Jair nunca tinha sido assaltado, mas quem é que sabe quando vai precisar de uma arma para defender o patrimônio, não é mesmo? E depois do que tinha acontecido em Vitória, sem polícia nem nada, ele não podia andar mais desarmado. Faltava apenas a oportunidade de exercer seu direito de cidadão de bem. E a bala de Jair foi pelo faro, encontrou Jesus. “Menos um”, disse a senhora que voltava do convento. “Mito”, disparou o homem que caminhava para o culto. Morreu Jesus. Quem vai se lembrar do menino Jesus? Além das mães, mais ninguém.

Após o fim – Perguntas e respostas
O breve causo narrado é fictício, mas baseado em condições reais que têm tencionado a luta de classes em nosso país, levando diferentes formas de violência às camadas mais humildes da sociedade. Entre tais condições estão a retirada de direitos trabalhistas e o congelamento de investimentos nas áreas da saúde e educação. E, ainda que qualquer estória seja simplista demais para explicar a questão, é inegável que a omissão do estado leva ao avanço da fome, exterminando o futuro do nosso menino Jesus, que ao fim são incontáveis e invisíveis meninas e meninos da periferia.

Mas quem se alimenta da morte cotidiana dos nossos jovens? Ou, trazendo o debate para o Espírito Santo, quem se beneficiou com o fim de duas centenas de vidas (barbaramente reduzidas a números) durante a greve da PM no início do ano?

Minha tese é que o ódio foi o vencedor. Servimos pão ao ódio ao esquecer a história de cada um dos mortos. E nossos meios de comunicação são especialistas em garantir tal esquecimento, agendando novos debates emburrecedores através de espetáculos imagéticos mais atrativos e fugazes aos sentidos já atrofiados de nosso Jair.

O Jair do nosso causo, aliás, são homens e mulheres comuns (qualquer um de nós), formados em um contexto cultural onde aprendem que a violência é resolvida com mais violência. Eles acreditam ser fortes, mas são fracos, pois incapazes de qualquer empatia com o diferente por puro medo de mudar. Como diria Dito, personagem de Guimarães Rosa em “Manuelzão e Miguilim”: “Só quem é bronco carece de ter raiva de quem não é bronco, eles acham que é moleza, não gostam... Eles têm medo que aquilo pégue e amoleça neles mesmos – com bondades...”.

No fim não é muito difícil constatar a multiplicação do Jair. Basta lembrar, no meio da crise da segurança, da corrida entre os condomínios por vigilantes armados – preparados ou não – ou olhar, por exemplo, para o absurdo Projeto de Lei 224/2017, que autoriza o porte de arma de fogo para moradores da zona rural.

Outro dia saia da Ufes quando me deparei com um outdoor sugerindo facilidades para o porte e aquisição de armas de fogo. Lembrei da ótima tese de doutorado da professora Flávia Mayer (Ufes) sobre a formação dos indivíduos a partir dos outdoors na cidade e pensei em quantos verão ali uma saída mais fácil. Alternativa, aliás, ratificada pela própria universidade quando ao anunciar a patrulha armada da PM como solução para a violência no campus.

E ao fim, sem qualquer filosofia, eu só fico mesmo pensando onde é que foi parar a história que Jesus (não o nosso, o mais antigo) falava sobre atirar a primeira pedra. Por isso lembro um ‘recado’ dele: “Dou-vos um novo mandamento: Amai-vos uns aos outros. Como eu vos tenho amado, assim também vós deveis amar-vos uns aos outros” (Jo 13: 34). Amai-vos, não armai-vos, entendeu!?


sexta-feira, 15 de setembro de 2017

“Populismo penal midiático”: palestra na Multivix Cariacica


Na última quinta-feira, 14 de setembro, estive na Faculdade Multivix de Cariacica a convite do professor (e amigo) Bruno Gadelha Xavier. Lá tive a alegria de ministrar para os estudantes dos dez períodos do curso a palestra de abertura do II Simpósio Jurídico: "Olhares, saberes e debates interdisciplinares acerca da contemporaneidade do Direito". Na sequência, Bruno lançou o excelente livro "Primeiro como lei, depois como farsa: do estado de direito aos direitos humanos a partir de Slavoj Žižek".

Durante minha fala de 50 minutos, o tema que levei para o debate foi “Populismo penal midiático: julgamento e morte na Sociedade Excitada”, assunto que compartilho brevemente nas próximas linhas, escritas após a apresentação.

Uma pincelada sobre a espetacularização através da notícia e medidas punitivas

Tela inicial da palestra. Charge do Latuff - https://latuffcartoons.wordpress.com/

As discussões no meio acadêmico sobre populismo penal midiático não são novas dentro do Direito (aliás, para uma apropriação ligeira sobre o tema, indico o excelente artigo do Justificando: “O populismo penal midiático e sua forma vingativa de punir”). A verdade, porém, é que pouco (ou quase nada) tem sido tratado sobre o assunto dentro do campo da Comunicação Social. Nesse sentido, minha proposta foi estabelecer com os estudantes um esboço inicial de algumas hipóteses (antíteses da definição hegemônica de notícia) que ajudam a problematizar – tomando o ponto de vista do jornalista – os perigos de um debate popularesco sobre punição dentro de uma Sociedade Excitada (ou superexcitada), que alimenta os indivíduos com pílulas audiovisuais ininterruptas de angústia e descrença no Direito Penal.

Em termos brevíssimos, as hipóteses defendidas aqui são de que o mito da imparcialidade que constitui o Jornalismo no Estado Moderno, bem como a supersaturação dos sentidos promovida pela multiplicação exponencial dos mass media e de seus produtos, condicionam o populismo penal. O objetivo é tão cristalino aos olhos do jornalista crítico quanto velado ao leitor desatento: o lucro dos oligopólios donos dos jornais e o endurecimento do sistema punitivo ao qual são fiadores, ainda que isso signifique uma reinvenção das estruturas básicas do Estado através de uma ideologia de extrema-direita (e aqui vale uma menção ao questionamento do esloveno Slavoj Žižek: não estaríamos nós iludidos ao acreditar que o totalitarismo é o oposto da democracia liberal moderna?).

Nos termos apresentados, o processo do populismo penal midiático apresenta duas principais consequências: i) a pressão popular sobre o promotores e juízes, que abrem mão de qualquer princípio de isonomia para atenderem as angústias e expectativas criadas pelos meios de comunicação; e ii) a aproximação dos indivíduos de coletivos autoritários a partir da difusão de sentimentos abstratos de angústia e descrença no sistema penal.

Sobre a primeira consequência, basta mirar o exemplo da Lava Jato, onde o juiz Sérgio Moro, ao citar manchetes de jornal em sua primeira sentença contra o ex-presidente Lula (notoriamente formulada para dar uma resposta aos mass media e não para que a lei se cumpra), insere em uma peça jurídica (peço perdão aos acadêmicos do Direito se a terminologia não estiver adequada) manchetes de jornal, textos que são, em sua essência, um juízo de valor sem qualquer vínculo concreto que garanta sua veracidade. Um dos exemplos mais notórios dentro do documento elaborado por Moro é o ponto 376, na página 65, quando o magistrado em questão cita reportagem de O Globo como “bastante relevante do ponto de vista probatório”. Basta interpelar um estudante de Jornalismo nos primeiros anos de faculdade que o mesmo, ainda que defenda uma possível imparcialidade, explicará que criar manchetes e selecionar determinados assuntos em detrimento de outros é uma maneira de hierarquizar o mundo dentro de uma visão recortada (pela subjetividade do repórter, pela política editorial e pelos interesses econômicos da empresa jornalística, etc). Ademais, considerando as condições supramencionadas, parece-me inaceitável do ponto de vista jurídico que a apuração do jornalista se torne a prova cabal da materialidade de um fato sem qualquer pestaneio.

Foquemos, contudo, na parte do processo (de populismo penal midiático, não o julgado pelo Moro) que diz respeito aos indivíduos, que abdicam dos princípios básicos de defesa perante o estado de direito optando por soluções tão desumanas e vingativas quanto ineficazes, porém incontestavelmente rápidas. Isso acontece, basicamente, em três etapas:

i) Existe, a priori, a espetacularização e ampliação exponencial da dor social pelos mass media que buscam atingir os sentidos já supersaturados dos indivíduos através de notícias infladas (afinal, se a minha mercadoria-notícia não parecer mais espetacular que a própria realidade e que as mercadorias-notícias fabricadas pelos concorrentes, o negócio quebra). Isso tudo é levando às últimas consequências em uma sociedade viciada em estímulos audiovisuais.

ii) Ao consumir essa realidade espetacular de maneira ininterrupta e acrítica (afinal, lembremos o sequestro do esquematismo que é próprio da Industria Cultural), os indivíduos já angustiados com sua existência em um mundo miserável, onde são explorados nas relações de trabalho de forma inerte, absorvem um sentimento genérico de revolta e angústia que faz parte da ideologia burguesa. Assim, abastecidos de valores coletivos abstratos (“chega de corrupção”, “chega de violência”), esses passam a reproduzir um discurso que atesta uma suposta incapacidade ou esgotamento do Direito Penal em vigor, passando a apoiar sistemas mais punitivos e duros que prejudicam a eles mesmos e só interessam aos grupos que detém o controle social.

iii) Incapazes de refletir, os indivíduos se associam a grupos autoritários que oferecem um alívio mais ligeiro para a dor social (que ao fim é a dor da própria existência que o indivíduo não enfrenta): mais violência através de penas de morte, linchamentos públicos, castração química e outros mecanismos de tortura e violência que tragicamente insistem em se repetir na história através do fascismo.

Essas breves hipóteses, baseadas em antíteses da compreensão moderna hegemônica do Jornalismo, nos permitem inferir determinada relação entre o populismo penal midiático e a proliferação daquilo que Theodor W. Adorno veio a definir como síndrome fascista. Em um contexto notoriamente dominado pelo espetáculo em detrimento da vida e pela semiformação dos indivíduos em detrimento da educação, não é estranho que outros Moros e Bolsonaros surjam. Trata-se, a rigor, apenas da manifestação de mais uma das irreconciliáveis contradições do estado burguês: a barbárie não é um perigo iminente, a barbárie é o que funda o modo de vida liberal.

quarta-feira, 6 de setembro de 2017

Sobre a capa de O Globo de 06 de setembro de 2017 (análise)


Não precisa ter mestrado em estudos de linguagens, nem estudar análise do discurso ou ser um semioticista para enxergar o atentado óbvio – contra o bom jornalismo, contra a nossa inteligência, contra a honra do ex-presidente Lula e da ex-presidenta Dilma, contra o Brasil e os brasileiros – que a capa de O Globo promove na edição desta quarta-feira, 06 de setembro de 2017.

Se um estudante de jornalismo – de qualquer período, seja calouro ou veterano – me apresenta como trabalho de uma disciplina um jornal com edição semelhante, ganha de presente uma prolongada explicação sobre o porquê de não se separar dois assuntos que são da mesma editoria, porém são absolutamente distintos [cada qual com condições objetivas e tempos próprios de apuração perante o estado de direito], com única e exclusivamente uma linha de traço fino e quase transparente. De brinde, eu provavelmente orientaria o jovem a ler talvez um Nietzsche, talvez um Adorno (é melhor a Filosofia nesses momentos) para mostrar o óbvio: o perigo ético em servir um mexidão de notícias na capa do jornal. Foi em uma comunidade quilombola que, certa vez, com sabedoria um mestre de jongo me explicou: “é que nem arroz com angu e frango, você tem que comer uma coisa de cada vez, se não fica sem conhecer o gosto de cada alimento”. Lá eles gostam de provar e conhecer o sabor de cada informação do prato. O mesmo deveria valer para o bom jornalismo.

Enfim, a hipótese acima é no caso de um estudante. Pensando que um repórter, diagramador, editor de capa, ou uma equipe de edição (como provavelmente foi o caso) me apresente situação semelhante, acho que não teria a mínima paciência para sequer avaliar (só caberia a recusa em publicá-la). É que não cabe muita explicação quando imaginamos a prática profissional do jornalismo, pois, além de apresentar uma estrutura textual pobre e de falhar miseravelmente na hierarquização das notícias (nem vou entrar nesse assunto porque já seria outra análise, mas na soma das condições objetivas com todos os critérios e valores-notícias que possam ser considerados também temos uma capa grotesca), as escolhas de O Globo levam a uma leitura direcionada, sugerindo e consolidando no leitor associações equivocadas e extremamente perigosas.

Normalmente acho a intenção de O Globo sempre tão explícita com esse tipo de capa, que já não gasto mais meu tempo com o jornal. Mas hoje achei necessária uma rápida análise crítica (de quem estuda um pouquinho o assunto) em oito tópicos. De forma didática é o seguinte... 

1) Para a análise consideremos o olhar ligeiro do leitor comum – e entenda aqui um leitor esporádico (segundo a Pesquisa Brasileira de Mídia de 2016, apenas 8% dos brasileiros leem jornal todos os dias). Ao passar em frente a banca de jornal, nosso leitor perceberá claramente em um primeiro contato visual que a capa de O Globo está dividida em dois grandes blocos: a manchete com a foto principal e abaixo “o resto” (notícias de menor relevância: das quais ele só apreende nessa primeira mirada a foto do futebol e a charge, que despertam de forma mais efetiva o sentido da visão a partir das cores). Vale ressaltar que a percepção desses dois blocos só será possível em alguns estabelecimentos, uma vez que, por insistir no formato Standard (ainda que não tenha conteúdo para isso), O Globo provavelmente estará dobrado e o leitor terá acesso apenas ao topo da capa.

2) Depois das frações de segundo desse primeiro momento (visualizando a página inteira ou apenas a primeira metade), ao iniciar a leitura – que é praticamente automática – a associação imediata do olhar de um leitor ocidental (que devora os textos da esquerda para a direita, de cima para baixo) será entre as palavras Lula, Dilma, PT, organização criminosa e a imagem da mala de dinheiro (ora, mas que foto perfeita para garantir que o sentido desejado pelos editores na manchete será comprado pelo leitor, não é mesmo!?).

3) O terceiro ponto é que a vida segue. Já parou para pensar em quantos milhares de pessoas passam em frente a banca de jornal, observam essa capa de forma apressada, assimilam aquela informação e seguem a vida sem comprar o impresso (não que o conteúdo interno vá melhorar muita coisa). Pois é. A relação de consumo da maioria absoluta já acabou aí e O Globo já fez o estrago que queria.

4) Supondo que o leitor não seguiu sua vida e decidiu parar para ler o texto abaixo da manchete ou presente no box da foto [ele pode estar parado em um ponto de ônibus ou adiantado para o trabalho], ainda assim ele terá muita dificuldade em desvincular as duas notícias. Primeiro porque, conforme supramencionado, mesmo com um olhar atento, a linha que circula o box é sutil demais para marcar qualquer diferenciação – ao contrário, parece sugerir mais um realce da manchete.

5) Outro ponto que não facilita a compreensão é o texto, mas notemos antes a disposição excessiva de elementos para a manchete: além da chamada principal, temos um chapéu (aquela expressão curta que é anterior ao texto principal), o bigode (a frase abaixo), a linha-fio (uma segunda frase explicativa logo depois do bigode) e um texto explicativo dividido em quatro colunas. Haja informação para tanto recurso, não é mesmo? O problema é que não há. O texto abusa da redundância: apenas nesse pedaço da capa cita o nome de Lula seis vezes (acho que nem Freud explica!), repete termos como “organização criminosa” por três vezes, e faz ao menos duas dezenas de menções negativas com termos como “corrupção”, “quadrilha do PT”, “quadrilhão do PT”, “prejuízos”, “denunciados”, “propina”, etc. Enfim, não se envergonham da pobreza textual em repetir elementos e informações de forma exaustiva em uma única chamada (afinal, o objetivo antiético parece valer mais do que o valor estético, não é mesmo?).

6) Enfim, são raros os leitores que vão chegar até o texto que serve como legenda para a foto no box [como sabemos, uma notícia sem qualquer vínculo com a primeira], afinal, após o bombardeio realizado na manchete, não existe mais dúvida que aquela mala é de Lula e da Dilma e que estão bolivarizando-comunizando-satanizando o Brasil. Mas enfim, advinha o que nosso hercúleo leitor vai encontrar se resistir até a legenda? É mais fácil dizer o que não vai encontrar: qualquer referência que desvincule a imagem publicada do Lula e da Dilma. Ao contrário. O texto fala dos mais de R$ 50 milhões, enaltece por ser a maior apreensão em dinheiro vivo do país e, apenas no final, cita em um tom condicional muito mais leve o nome do envolvido: “[...]teria cedido (o apartamento) para que o ex-ministro Geddel Vieira Lima (PMDB-BA), em prisão domiciliar, guardasse seus pertences”. Notem que o tom é o oposto da manchete, quando a condicional – obrigatória por ética e por lei – é intercalada com afirmações genéricas, mas fortes das fontes como “o esquema causou...”, “é apontada...”.

7) E aí é o grand finale da sacanagem. Você acha que em algum lugar na legenda foi mencionado para o leitor que o Geddel foi ministro do Temer? Pois é. Não fizeram qualquer menção. Deixam na memória a participação dele nos governos petistas. E aí mais uma vez, o leitor comum, que de forma valente chegou até aqui, vai somar dois mais dois e descobrir que isso dá cinco: “essa mala é fruto do lulopetismo” (usando esse termo cômico que está mais na moda nas páginas do Estadão do que a expressão "top" no Facebook).

8) Vou encerrar a análise por aqui, mas não sem antes convidá-los a notar que o “Temer ganha fôlego” em O Globo (também, com amigões assim) e o tamanho da importância que o fechamento da UERJ tem para o jornal, que circula prioritariamente no Rio de Janeiro. A pauta está lá no pé da página, rigorosamente reduzida a nada perto das lágrimas do Maia ou do futebol canarinho.

segunda-feira, 4 de setembro de 2017

Artigo na Revista Sala 206 (ISSN: 2318-7980)


Cinema e publicidade na era pós-massiva: representação da mulher no universo convergente da franquia Star Wars.

63 segundos. Desconsiderando as aparições da Princesa Leia, interpretada pela atriz norte-americana Carrie Fisher (1956 - 2016), esse é o tempo total de fala destinado às demais personagens femininas nos 388 minutos que compõe uma das trilogias mais famosas da história do cinema: os episódios IV, V e VI da saga Star Wars. Mais do que desvelar as relações machistas na produção cinematográfica hollywoodiana, tal dado fomenta uma espécie de angústia, algo como um thaumázein (espanto, perplexidade), quando percebemos que, contraditoriamente, não apenas os três primeiros longas-metragens, mas toda a franquia é um sucesso da indústria do entretenimento também entre as mulheres.

Partindo de tal constatação, torna-se inevitável problematizar: se a construção de um enredo misógino, com a mulher sem fala e sempre à espera de um herói masculino, "deu certo" durante mais de três décadas do ponto de vista comercial, o que justifica a mudança drástica apresentada no sétimo episódio da saga, O Despertar da Força (2015), que traz a personagem Rey, interpretada pela atriz Daisy Ridle, como protagonista? Trata-se de um mero reconhecimento dos produtores à fidelidade do público feminino ou experimentamos, pela primeira vez na história de Star Wars, uma configuração midiática que permite às consumidoras da franquia ter o espaço comunicacional necessário para cobrar de forma efetiva a representatividade que lhes cabe nos produtos culturais?

Alguns dos caminhos para responder a questão estão no artigo publicado nesta edição da Revista Sala 206 como fruto de um trabalho bacanérrimo que orientei da Leticia Carvalho e que segue dando frutos. Para ler na íntegra, clica aqui ó: http://goo.gl/HVpwrU

quarta-feira, 24 de maio de 2017

quinta-feira, 18 de maio de 2017

Mesa "Austeridade, mídia e criminalização da vida"


Participo hoje, às 18h, da mesa "Austeridade, mídia e criminalização da vida". O evento será realizado no auditório do IC-II, do Centro de Ciências Humanas e Naturais, no campus de Goiabeiras da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Estarão comigo na mesa as professoras Ana Carolina Galvão (Centro de Educação da UFES) e Ana Heckert (Departamento de Psicologia da UFES). Também estará presente o professor Acácio Augusto (Departamento de Sociologia da UVV).

Realizada em conjunto pelo Fórum Capixaba de Lutas Sociais e pelo Fórum Permanente de Linguagem, do Departamento de Línguas e Letras da UFES, a mesa tem como objetivo principal discutir a criminalização da vida das pessoas mais pobres pela mídia, sobretudo a partir das políticas de austeridade praticadas no Espírito Santo.

Mais informações no site da UFES.

quarta-feira, 5 de abril de 2017

A origem do ódio de Jair Bolsonaro aos quilombolas (artigo de opinião)

 Quilombo de Ivaporunduva é exemplo de organização comunitária.
Foto: Emerson Campos (OUT/2014)

A origem do ódio de Jair Bolsonaro aos quilombolas (05/04/17) Escrevo este breve artigo doze horas depois de testemunhar, através de relatos e vídeos publicados em diferentes portais de notícia, o gravíssimo ataque racista praticado pelo deputado federal Jair Bolsonaro (PSC-RJ) contra as comunidades quilombolas – logo, redijo ainda no calor do “incômodo” [para não dizer outro termo menos elegante].

Preciso concordar que não existe uma grande novidade na pauta, afinal, todos nós, progressistas, sabemos que o parlamentar em questão adota práticas e discursos conservadores que estão impregnados de machismo, misoginia, homofobia... e por aí vai. Na verdade, a turma reaça também sabe disso, só finge que não, pois compartilha das mesmas opiniões. Portanto, é imperativo entendermos que não lidamos com um, mas – por mais nefasta que a imagem possa parecer – com uma massa acéfala e amorfa de “Bolsonaros”. Daí a importância de entender o ódio que move essa gente, evitando a naturalização de qualquer modus operandi fascista.

As origens para o discurso e as práticas de ódio são diversas e não têm uma explicação simples, mas certamente passam por uma sociedade doente, composta por indivíduos semiformados (do alemão “halbbildung”), incapazes de agir e pensar criticamente. No referido contexto, podemos dizer que Bolsonaro e sua trupe se enquadram perfeitamente naquilo que o filósofo e sociólogo frankfurtiano Theodor Adorno (1903-1969) chamou de síndrome fascista (ou da personalidade autoritária), fenômeno sóciopsicológico caracterizado pela identificação com as elites, pelo preconceito étnico e racial, pela obsessão em relação à sexualidade, pela agressividade reprimida e pelo sadomasoquismo.

Destarte, considerando tal cenário, um caminho importante para entender o ódio seria buscar as raízes nos perseguidores e não nas vítimas, reconhecendo os mecanismos objetivos e subjetivos que tornam as pessoas capazes de cometer atos tão bárbaros como o racismo. Porém, como isso não é possível dada a condição histórica do sujeito em questão (em termos menos rebuscados, a indisposição do deputado e de seus seguidores para qualquer diálogo), um caminho possível para entender suas ações – e, neste caso específico, a origem do ódio aos quilombolas – é identificar na própria vítima (por mais estranho que isso possa parecer) quais condições objetivas provocam tanto “terror” na extrema-direita brasileira.

Para listar tais pontos, recorri às anotações e gravações da viagem que realizei em outubro de 2014 à Comunidade Quilombola de Ivaporunduva, no Vale do Ribeira (Eldorado, SP), a mesma ofendida por Jair Bolsonaro em sua fala na Hebraica ontem. Na ocasião, eu ainda atuava como Analista de Comunicação Social em um projeto de mitigação ambiental, mas já desenvolvia as bases do que se tornaria meu primeiro projeto de tese, por isso acabei anotando bastante coisa. Neste sentido, a partir dos registros que fiz, listei as seis aparentes condições que alimentam o ódio do parlamentar contra os quilombolas, a saber:

i) História de luta e efetiva distribuição de renda. A comunidade de Ivaporunduva foi fundada no século XVII, venceu o regime escravocrata e luta há séculos contra uma sociedade marcada pela desigualdade e pelo preconceito racial. Em meio a tantas batalhas, lá existe uma coerência absurda com o que se diz e a práxis. Se o deputado de fato esteve lá como afirma, o que ele viu certamente foi um dos mais bonitos e importantes exemplos que meus olhos já puderam testemunhar em solo brasileiro de organização comunitária e efetiva distribuição de renda entre os moradores.

ii) Importância do acesso às políticas sociais. Mas nem sempre o diagnóstico apresentado acima – com alguma renda para ser distribuída – foi a realidade. O quilombo de Ivaporunduva também é um exemplo da importância do acesso aos programas sociais. Até o início do governo Lula, em 2002, a coisa era diferente por lá. Foi na Capela Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos de Ivaporunduva, datada de 1775, que Benedito da Silva, mais conhecido como Seu Ditão, um dos líderes mais antigos da comunidade, me relatou: "Antes nem todos os dias tínhamos arroz na mesa. Hoje, com o acesso às políticas públicas e o fortalecimento da associação dentro do quilombo, a coisa é diferente. Pode olhar aí, quase toda família tem seu carro novo na garagem".

iii) Esvaziamento da falácia sobre “assistencialismo imediatista”. Outro relato que registrei é que o primeiro programa social ao qual tiveram acesso foi o de distribuição de cestas básicas. Com a garantia da comida na mesa em uma quantidade mínima para se trabalhar com dignidade, os quilombolas utilizaram esse primeiro programa como impulso para se organizar de forma comunitária (e não como ponto final do percurso, como maldosamente prega a direita brasileira), procuraram novas formas de gerar recurso e descobriram, também através do acesso às políticas públicas, que tinham potencial para a agricultura familiar. Iniciaram o cultivo de banana orgânica e passaram a vender a fruta para o governo fornecer como merenda nas escolas públicas. Desde então, cancelaram o recebimento da cesta básica que já não era mais necessária e investiram, também, na produção de derivados da banana, cabendo à associação comunitária coordenar todo o sistema de divisão da receita que a agricultura gera.

iv) Resistência ao assédio do capital privado em áreas de preservação ambiental e cultural. Outra área de atuação importante dos quilombolas do Vale do Ribeira é o ecoturismo. Os quilombos estão cravados no coração de uma reserva de mata atlântica com cachoeiras lindíssimas e inúmeras cavernas, área extremamente assediada por grupos privados que buscam explorar o potencial turístico. Os quilombolas rejeitaram as investidas do capital externo e construíram sua própria pousada. Na região do parque, eles se organizaram e montaram a equipe responsável por guiar os visitantes. À época, Seu Ditão me narrou: "se tivéssemos aceitado a interferência e gestão externa do nosso território quando descobriram esse potencial turístico, essa natureza provavelmente não estaria mais aí".

v) Participação política efetiva e ocupação dos espaços com a pauta quilombola. Os líderes das comunidades quilombolas do Vale do Ribeira participam ativamente do movimento nacional dos quilombolas através da CONAQ (Coordenação Nacional das Comunidades Quilombolas), ocupando cargos na diretoria e presidência. Muitos cursaram graduação e pós-graduação nas melhores universidades públicas do país e levam todo o conhecimento para dentro da comunidade, contribuindo para a organização social do espaço e para a luta quilombola. Na comunidade, os jovens participam das decisões dentro da associação a partir dos 16 anos de idade, permitindo uma formação para o debate nos espaços púbicos e a participação crítica como cidadãos ou líderes comunitários.

vi) O operário barbudo. Um dos grandes problemas estruturais que o quilombo de Ivaporunduva enfrentou ao longo de sua história foi o acesso até a cidade através do rio. Um barbudo operário certa vez passou por lá e percebeu a importância de se construir uma ponte nova para melhorar a vida da comunidade. Ele comentou que, se um dia acontecesse o inesperado fato de um operário se tornar presidente da República, iria dar um jeito de fazer a tal ponte. Ele inaugurou a ponte pessoalmente em 2010.

Como disse anteriormente, a origem do ódio é multifacetada e complexa, mas objetivamente podemos tomar os fatos descritos acima como explicação parcial da aversão dessa massa de “Bolsonaros” aos quilombolas. Afinal, os quilombolas do Vale do Ribeira são apenas um entre incontáveis exemplos que comprovam a determinação do povo negro em uma luta de resistência contra a desigualdade, pelo direito do acesso às políticas sociais e pela preservação do patrimônio natural, histórico e cultural das comunidades tradicionais. Eles representam tudo que o Bolsonaro mais teme (e por isso tem ódio): a força do povo humilde brasileiro.

Eu, da minha parte, só posso agradecer. Às companheiras e aos companheiros de Ivaporunduva, obrigado pelo aprendizado sem igual que vocês me proporcionaram naquela conturbada semana pré-eleições em 2014. Vocês são a prova viva da vitória da utopia sobre a barbárie. E viva Zumbi!
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Artigo sobre o selfie e a morte da experiência na Revista Vitória (ISSN: 2317-4102)

O selfie e a morte da experiência: o dia em que viramos de costas para o Santo Padre.
 
Celulares parecem mais relevantes que a realidade.
Foto: Emerson Campos (JAN/2017)

Uns ou outros podem até contestar, mas precisamos admitir que, via de regra, sair para jantar com a pessoa querida ou conhecer uma nova cidade já não parece ter a mesma magia sem um celular carregado e com acesso à internet. Isso porque, viciados em imagens, acreditamos cegamente que é preciso registrar e compartilhar cada momento para garantir sua validade. O resultado disso? Estamos matando a experiência com selfies.

Sei que a tese supracitada pode parecer desconcertante, mas permitam-me explicar. Enquanto contemporâneos às redes sociais online, nossa existência se dá em uma sociedade marcada pela supersaturação dos nossos sentidos a partir de uma multiplicação exponencial de imagens que superam de maneira imensurável nossa capacidade de consumi-las. O resultado de tal frenesi, conforme analisa o filósofo Christoph Türcke, é que experimentamos um descolamento no sentido fisiológico daquilo que anteriormente significou sensação: hoje a ‘imagem sensacional’ parece valer mais que o sentir.

E assim, na busca de alimentar o corpo com sensações imagéticas, inventamos, sem perceber, novo sentido semântico para o verbo ‘existir’. Tal como ocorreu com Gregor Samsa, personagem kafkaniano metamorfoseado em um gigantesco inseto, testemunhamos a famosa citação de René Descartes (1596-1650) ressurgir com uma assustadora e cascuda reinauguração terminológica: “posto, logo existo”.

Trocando em miúdos: você e seus amigos se reencontram após anos e, ao invés de conversar, tratam logo de passar a noite tentando o selfie perfeito; ou o pênalti decisivo para o seu time é marcado e, mesmo no estádio, você assiste à cobrança pela tela do celular enquanto filma. Estariam as imagens vencendo o real?

Muitos filósofos contemporâneos defenderão que é a virtualização do real. Eu não diria isto. Acredito sim que falamos da dura vitória da vivência rasteira (Erlebnis) sobre a experiência verdadeira (Erfahrung), como já constatava o filósofo Walter Benjamin (1892-1940) à sua época. Ou, talvez, da postergação da experiência autêntica para uma experiência forjada a ser vivida em outro momento na tela.

Permitam-me ilustrar com um breve relato. No último janeiro estive com minha família na audiência com o Papa Francisco, no Vaticano. Haviam aproximadamente cinco mil presentes. O objetivo de todos era ver o Santo Padre e ouvir sua mensagem, correto? Errado. Em sua maioria, os fiéis buscavam o melhor ângulo, a melhor foto. Ao invés de experenciar a presença do Sucessor de Pedro, a maioria preferiu dedicar os esforços à produção de imagens que permitissem, em um momento posterior, verificar se tinham conseguido estar ou não com o Papa. Teve quem virasse de costas em sua passagem para tentar um selfie. Por isso, por mais dura que a tese neste artigo possa parecer, é preciso destacar que mais devastadoras são as consequências da vitória do selfie sobre a experiência. E não há uma grande solução a ser proposta, a não ser: na próxima viagem, deixe o celular o maior tempo possível desligado. A lembrança do momento será muito mais rica que qualquer imagem
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segunda-feira, 20 de fevereiro de 2017

Artigo sobre Walter Benjamin na Revista Pró-Discente, do PPGE-UFES (ISSN: 1676-840X)

Fragmentos benjaminianos e quatro caminhos para a pesquisa em educação: experiência, infância, arte e poder. 

Resumo

Walter Benjamin é, em todas as acepções da palavra, “inclassificável” (LÖWY, 2005). Autor de uma obra ampla e fragmentada, densa e hermética, que reúne de maneira única – mas não sobrepõe – influências marxistas, românticas e messiânicas, o pensador berlinense tem fomentado uma diversidade considerável de propostas de pesquisa em Educação na atualidade, multiplicidade que, entre outras razões, se justifica pela própria abrangência e pelo caráter anacrônico de sua produção como filósofo e crítico literário. Destarte, este trabalho de revisão bibliográfica busca contribuir para o avanço das investigações que tomam os conceitos benjaminianos como base, explicitando em um mosaico, que não pretende ser definitivo, quatro diferentes eixos temáticos que podem nortear novos estudos críticos na área da Educação:
experiência, infância, arte e poder.


sábado, 11 de fevereiro de 2017

Greve da PM no ES: a invenção da barbárie para a classe média capixaba

Para grande parte dos moradores de bairros mais nobres, a violência foi descoberta no último sábado. Para a periferia, ela é o cotidiano
Foto: Tânia Rêgo/ABr (Reprodução DomTotal)
Nota. Texto escrito para o Portal DomTotal. Publicado também no Diário do Centro do Mundo.
Desde sábado, o Espírito Santo – diga-se de passagem, quase sempre preterido nas manchetes nacionais por qualquer assunto desimportante que garanta audiência – ganhou notoriedade em diferentes veículos da mídia tradicional no país com o estouro da greve da Polícia Militar, movimento que, camuflado pela encenação de familiares bloqueando a saída dos batalhões e companhias, esvaziou em sua totalidade o efetivo da corporação das ruas.

O resultado?

Uma proliferação dantesca de furtos, assaltos, arrombamentos, arrastões e homicídios pelas ruas do estado. Só mortes, até o fechamento deste texto, foram 75. Número suficientemente estarrecedor (e, sobretudo, próximo no sentido geográfico) para convencer a classe média de que foi descoberto algo digno de se gritar, a plenos pulmões, eureca:

– Inventou-se a barbárie capixaba!

Tal percepção está ilustrada na coluna de opinião publicada na última terça-feira, 07 de fevereiro, no jornal A Gazeta (ES), que constata em tom indignado: “a rotina do capixaba virou um filme de terror”.

O registro supracitado só ajuda a corroborar uma certeza autoritária entre os moradores dos bairros mais abonados do estado: é preciso buscar o remédio que coloque fim neste longa-metragem macabro, ‘novidade absurda’ que brotou nos últimos dias.

Destarte – como a miséria do espírito humano e a falência do nosso modo de vida sempre podem superar a mera aparência dos números –, outra consequência da greve é a multiplicação, em velocidade exponencial, dos grupos de justiceiros e dos mantras fascistas de indignação, quase sempre resumidos na repetição de uma só palavra por três vezes, como dão testemunho incontáveis vídeos gravados pela cidade a cada batedor de carteira detido por ‘populares’:

– Mata, mata, mata!

Mais uma vez, eureca. Em uma lógica quase irrefutável na mente dos justiceiros, surge a cura da violência que bate à porta: mais violência. E assim caminha grande parte da classe média capixaba, tal como Otto Adolf Eichmann, engenheiro nazista descrito por Hannah Arendt como um “bom pai de família”, mas que foi capaz de projetar todo o sistema de extermínio em Auschwitz. Um homem amoroso e atento aos seus, mas cego com quem acreditava ser diferente. Tudo em nome do bem-estar do grupo.

Sei que o diagnóstico é duro e a descrição até este ponto do texto marcada – em parte considerável – pela ironia. Mas é para ser, pois quase sempre faltam recursos textuais a qualquer um que pretenda descrever o absurdo. E (repetindo palavras) mais absurda que a própria situação – e aqui não estou discutindo as motivações ou a legitimidade do movimento dos policiais militares, tampouco a gravidade dos crimes cometidos nas ruas – é a aceitação do discurso (elaborado e amplamente divulgado por toda a mídia) de que a violência começou no último sábado e vai acabar quando a PM voltar. Não vai. Para grande parte da classe média, a barbárie pode ter tido início no último sábado. Para a periferia, ela é o cotidiano. Os jornais só não mostram isso.

E se a imprensa não cobre como deveria, imagino que deva ser mesmo difícil para alguns grupos sociais aceitar que o medo, a violência e a barbárie fazem parte do dia-a-dia do Espírito Santo, sobretudo para quem nunca entrou em um bairro de periferia dominado pela disputa do tráfico de drogas, onde o estado não chega de forma alguma, a não ser fardado (e normalmente em condições não amistosas, para não dizer outra coisa).

Outro ponto a ser considerado é que (salvo raríssimas publicações e a desgosto dos excelentes repórteres que habitam as redações do ES, muitos dos quais tenho orgulho de ter sido colega ou professor) a imprensa capixaba vive em função da apuração pelo Boletim de Ocorrência. Isto significa que a despeito de todo o esforço de cobrir as cenas de homicídio (que posso testemunhar que existe), os critérios de notícia ainda são os mesmos de um século atrás, bem como os vínculos econômicos e políticos. Em outros termos: cobre-se jornalisticamente o resultado, jamais a causa do problema.

Por isso, neste momento que deveria ser marcado pela reflexão, mas que tem sido preenchido por certezas conservadoras, proponho, a partir da dura constatação de um problema de interpretação da realidade por um segmento social e tomando emprestada (de forma modesta) a Teoria Crítica do filósofo alemão Theodor W. Adorno (1903-1969), lançar crítica negativa às verdades estabelecidas em um processo dialético que deveria ser constante e exaustivo, mas que podemos fazer, por ora, de maneira breve. Para tal, basta um pouco de empatia e disposição para refletir sobre pontos de vista diferentes. Assim, proponho cinco grupos compostos por distintas questões, a saber:

i) Será que a classe média sabe que está experimentando uma amostra pífia do medo que os moradores da periferia vivem diariamente, provocado, inclusive, pela própria PM? Que os mais afetados pelo movimento são os mais pobres, obrigados a atravessar o fogo cruzado do acerto de contas entre diferentes grupos criminosos? E se ela não sabe, qual é a causa disso? Podemos culpar a desinformação produzida pelos veículos tradicionais de mídia ou temos um problema social mais grave, que inclui outras instâncias educativas e de formação cultural dentro de nossa sociedade?

ii) Em meio aos discursos conservadores surge o discurso imperativo de que a PM é indispensável, mas será que uma parte da solução para a violência que a classe média está testemunhando nestes dias (reforçando: que existe no cotidiano dos mais pobres) não é a desmilitarização da polícia? Ou, pensando na extinção e desarticulação dos grupos criminosos, a legalização da produção, venda e consumo da maconha (como, aliás, foi proposto recentemente pelo ministro do STF, Luís Roberto Barroso)?

iii) Quais fatores sociais justificam ou explicam o comportamento autoritário do dito “cidadão de bem” que ao perceber a proximidade da violência decide levá-la ao extremo como forma de superação?

iv) É possível se solidarizar com os militares como companheiros da classe trabalhadora (mesmo sabendo das condições precárias do trabalho) quando os mesmos se reafirmam manifestação após manifestação (de professores, estudantes...), com balas e muita porrada, como pertencentes a uma outra categoria, que vive sob outro conjunto de leis e privilégios? Por outro lado, é possível negar o escárnio com que o governo do estado trata o movimento grevista (vide depoimento do Secretario de Segurança Pública, André Garcia, que tratou o movimento da categoria como “teatrinho ridículo” em entrevista ao vivo na TV Gazeta)? Ademais, faz sentido que outras categorias de trabalhadores aproveitem o momento – como tem ocorrido – para elaborar discursos revanchistas contra os policiais militares?

v) Existe jornalismo crítico na imprensa tradicional do ES? Até quando a cifra vai valer mais que a vida? Ou que o resultado do problema será mais importante que a causa? Quem são os mortos nestes dias de greve? Por que não se discute a segurança de forma mais ampla, para além da greve ou dos crimes? Falta independência para discutir a omissão do governo? Qual o medo das pautas progressistas?


São questões que suscitam, certamente, mais perguntas do que respostas. E o exercício deve ser este, de reflexão constante, para que não façamos como Ulisses em sua Odisseia de retorno à Ilha de Ítaca, quando, para vencer as sereias, pede aos remadores para ser amarrado ao mastro da embarcação de modo que atravessasse sem se lançar ao mar e, ao mesmo tempo, pudesse contemplar o canto. Parece estranha a leitura, mas a problematização que busco (também inspirada na filosofia de Theodor W. Adorno) é ainda mais simples do que o relato breve e grosseiro que faço da narrativa de Homero. De certa forma, Ulisses é a representação de um setor da sociedade brasileira que deseja consumir o espetáculo da violência no noticiário, mas prefere não se lançar ao mar (ou às últimas consequências) para buscar uma solução ao problema, justificando sua postura com as amarras da distância. A questão que se faz urgente é: até quando vamos fingir que as sereias não podem nos alcançar?