sexta-feira, 15 de setembro de 2017

“Populismo penal midiático”: palestra na Multivix Cariacica


Na última quinta-feira, 14 de setembro, estive na Faculdade Multivix de Cariacica a convite do professor (e amigo) Bruno Gadelha Xavier. Lá tive a alegria de ministrar para os estudantes dos dez períodos do curso a palestra de abertura do II Simpósio Jurídico: "Olhares, saberes e debates interdisciplinares acerca da contemporaneidade do Direito". Na sequência, Bruno lançou o excelente livro "Primeiro como lei, depois como farsa: do estado de direito aos direitos humanos a partir de Slavoj Žižek".

Durante minha fala de 50 minutos, o tema que levei para o debate foi “Populismo penal midiático: julgamento e morte na Sociedade Excitada”, assunto que compartilho brevemente nas próximas linhas, escritas após a apresentação.

Uma pincelada sobre a espetacularização através da notícia e medidas punitivas

Tela inicial da palestra. Charge do Latuff - https://latuffcartoons.wordpress.com/

As discussões no meio acadêmico sobre populismo penal midiático não são novas dentro do Direito (aliás, para uma apropriação ligeira sobre o tema, indico o excelente artigo do Justificando: “O populismo penal midiático e sua forma vingativa de punir”). A verdade, porém, é que pouco (ou quase nada) tem sido tratado sobre o assunto dentro do campo da Comunicação Social. Nesse sentido, minha proposta foi estabelecer com os estudantes um esboço inicial de algumas hipóteses (antíteses da definição hegemônica de notícia) que ajudam a problematizar – tomando o ponto de vista do jornalista – os perigos de um debate popularesco sobre punição dentro de uma Sociedade Excitada (ou superexcitada), que alimenta os indivíduos com pílulas audiovisuais ininterruptas de angústia e descrença no Direito Penal.

Em termos brevíssimos, as hipóteses defendidas aqui são de que o mito da imparcialidade que constitui o Jornalismo no Estado Moderno, bem como a supersaturação dos sentidos promovida pela multiplicação exponencial dos mass media e de seus produtos, condicionam o populismo penal. O objetivo é tão cristalino aos olhos do jornalista crítico quanto velado ao leitor desatento: o lucro dos oligopólios donos dos jornais e o endurecimento do sistema punitivo ao qual são fiadores, ainda que isso signifique uma reinvenção das estruturas básicas do Estado através de uma ideologia de extrema-direita (e aqui vale uma menção ao questionamento do esloveno Slavoj Žižek: não estaríamos nós iludidos ao acreditar que o totalitarismo é o oposto da democracia liberal moderna?).

Nos termos apresentados, o processo do populismo penal midiático apresenta duas principais consequências: i) a pressão popular sobre o promotores e juízes, que abrem mão de qualquer princípio de isonomia para atenderem as angústias e expectativas criadas pelos meios de comunicação; e ii) a aproximação dos indivíduos de coletivos autoritários a partir da difusão de sentimentos abstratos de angústia e descrença no sistema penal.

Sobre a primeira consequência, basta mirar o exemplo da Lava Jato, onde o juiz Sérgio Moro, ao citar manchetes de jornal em sua primeira sentença contra o ex-presidente Lula (notoriamente formulada para dar uma resposta aos mass media e não para que a lei se cumpra), insere em uma peça jurídica (peço perdão aos acadêmicos do Direito se a terminologia não estiver adequada) manchetes de jornal, textos que são, em sua essência, um juízo de valor sem qualquer vínculo concreto que garanta sua veracidade. Um dos exemplos mais notórios dentro do documento elaborado por Moro é o ponto 376, na página 65, quando o magistrado em questão cita reportagem de O Globo como “bastante relevante do ponto de vista probatório”. Basta interpelar um estudante de Jornalismo nos primeiros anos de faculdade que o mesmo, ainda que defenda uma possível imparcialidade, explicará que criar manchetes e selecionar determinados assuntos em detrimento de outros é uma maneira de hierarquizar o mundo dentro de uma visão recortada (pela subjetividade do repórter, pela política editorial e pelos interesses econômicos da empresa jornalística, etc). Ademais, considerando as condições supramencionadas, parece-me inaceitável do ponto de vista jurídico que a apuração do jornalista se torne a prova cabal da materialidade de um fato sem qualquer pestaneio.

Foquemos, contudo, na parte do processo (de populismo penal midiático, não o julgado pelo Moro) que diz respeito aos indivíduos, que abdicam dos princípios básicos de defesa perante o estado de direito optando por soluções tão desumanas e vingativas quanto ineficazes, porém incontestavelmente rápidas. Isso acontece, basicamente, em três etapas:

i) Existe, a priori, a espetacularização e ampliação exponencial da dor social pelos mass media que buscam atingir os sentidos já supersaturados dos indivíduos através de notícias infladas (afinal, se a minha mercadoria-notícia não parecer mais espetacular que a própria realidade e que as mercadorias-notícias fabricadas pelos concorrentes, o negócio quebra). Isso tudo é levando às últimas consequências em uma sociedade viciada em estímulos audiovisuais.

ii) Ao consumir essa realidade espetacular de maneira ininterrupta e acrítica (afinal, lembremos o sequestro do esquematismo que é próprio da Industria Cultural), os indivíduos já angustiados com sua existência em um mundo miserável, onde são explorados nas relações de trabalho de forma inerte, absorvem um sentimento genérico de revolta e angústia que faz parte da ideologia burguesa. Assim, abastecidos de valores coletivos abstratos (“chega de corrupção”, “chega de violência”), esses passam a reproduzir um discurso que atesta uma suposta incapacidade ou esgotamento do Direito Penal em vigor, passando a apoiar sistemas mais punitivos e duros que prejudicam a eles mesmos e só interessam aos grupos que detém o controle social.

iii) Incapazes de refletir, os indivíduos se associam a grupos autoritários que oferecem um alívio mais ligeiro para a dor social (que ao fim é a dor da própria existência que o indivíduo não enfrenta): mais violência através de penas de morte, linchamentos públicos, castração química e outros mecanismos de tortura e violência que tragicamente insistem em se repetir na história através do fascismo.

Essas breves hipóteses, baseadas em antíteses da compreensão moderna hegemônica do Jornalismo, nos permitem inferir determinada relação entre o populismo penal midiático e a proliferação daquilo que Theodor W. Adorno veio a definir como síndrome fascista. Em um contexto notoriamente dominado pelo espetáculo em detrimento da vida e pela semiformação dos indivíduos em detrimento da educação, não é estranho que outros Moros e Bolsonaros surjam. Trata-se, a rigor, apenas da manifestação de mais uma das irreconciliáveis contradições do estado burguês: a barbárie não é um perigo iminente, a barbárie é o que funda o modo de vida liberal.

quarta-feira, 6 de setembro de 2017

Sobre a capa de O Globo de 06 de setembro de 2017 (análise)


Não precisa ter mestrado em estudos de linguagens, nem estudar análise do discurso ou ser um semioticista para enxergar o atentado óbvio – contra o bom jornalismo, contra a nossa inteligência, contra a honra do ex-presidente Lula e da ex-presidenta Dilma, contra o Brasil e os brasileiros – que a capa de O Globo promove na edição desta quarta-feira, 06 de setembro de 2017.

Se um estudante de jornalismo – de qualquer período, seja calouro ou veterano – me apresenta como trabalho de uma disciplina um jornal com edição semelhante, ganha de presente uma prolongada explicação sobre o porquê de não se separar dois assuntos que são da mesma editoria, porém são absolutamente distintos [cada qual com condições objetivas e tempos próprios de apuração perante o estado de direito], com única e exclusivamente uma linha de traço fino e quase transparente. De brinde, eu provavelmente orientaria o jovem a ler talvez um Nietzsche, talvez um Adorno (é melhor a Filosofia nesses momentos) para mostrar o óbvio: o perigo ético em servir um mexidão de notícias na capa do jornal. Foi em uma comunidade quilombola que, certa vez, com sabedoria um mestre de jongo me explicou: “é que nem arroz com angu e frango, você tem que comer uma coisa de cada vez, se não fica sem conhecer o gosto de cada alimento”. Lá eles gostam de provar e conhecer o sabor de cada informação do prato. O mesmo deveria valer para o bom jornalismo.

Enfim, a hipótese acima é no caso de um estudante. Pensando que um repórter, diagramador, editor de capa, ou uma equipe de edição (como provavelmente foi o caso) me apresente situação semelhante, acho que não teria a mínima paciência para sequer avaliar (só caberia a recusa em publicá-la). É que não cabe muita explicação quando imaginamos a prática profissional do jornalismo, pois, além de apresentar uma estrutura textual pobre e de falhar miseravelmente na hierarquização das notícias (nem vou entrar nesse assunto porque já seria outra análise, mas na soma das condições objetivas com todos os critérios e valores-notícias que possam ser considerados também temos uma capa grotesca), as escolhas de O Globo levam a uma leitura direcionada, sugerindo e consolidando no leitor associações equivocadas e extremamente perigosas.

Normalmente acho a intenção de O Globo sempre tão explícita com esse tipo de capa, que já não gasto mais meu tempo com o jornal. Mas hoje achei necessária uma rápida análise crítica (de quem estuda um pouquinho o assunto) em oito tópicos. De forma didática é o seguinte... 

1) Para a análise consideremos o olhar ligeiro do leitor comum – e entenda aqui um leitor esporádico (segundo a Pesquisa Brasileira de Mídia de 2016, apenas 8% dos brasileiros leem jornal todos os dias). Ao passar em frente a banca de jornal, nosso leitor perceberá claramente em um primeiro contato visual que a capa de O Globo está dividida em dois grandes blocos: a manchete com a foto principal e abaixo “o resto” (notícias de menor relevância: das quais ele só apreende nessa primeira mirada a foto do futebol e a charge, que despertam de forma mais efetiva o sentido da visão a partir das cores). Vale ressaltar que a percepção desses dois blocos só será possível em alguns estabelecimentos, uma vez que, por insistir no formato Standard (ainda que não tenha conteúdo para isso), O Globo provavelmente estará dobrado e o leitor terá acesso apenas ao topo da capa.

2) Depois das frações de segundo desse primeiro momento (visualizando a página inteira ou apenas a primeira metade), ao iniciar a leitura – que é praticamente automática – a associação imediata do olhar de um leitor ocidental (que devora os textos da esquerda para a direita, de cima para baixo) será entre as palavras Lula, Dilma, PT, organização criminosa e a imagem da mala de dinheiro (ora, mas que foto perfeita para garantir que o sentido desejado pelos editores na manchete será comprado pelo leitor, não é mesmo!?).

3) O terceiro ponto é que a vida segue. Já parou para pensar em quantos milhares de pessoas passam em frente a banca de jornal, observam essa capa de forma apressada, assimilam aquela informação e seguem a vida sem comprar o impresso (não que o conteúdo interno vá melhorar muita coisa). Pois é. A relação de consumo da maioria absoluta já acabou aí e O Globo já fez o estrago que queria.

4) Supondo que o leitor não seguiu sua vida e decidiu parar para ler o texto abaixo da manchete ou presente no box da foto [ele pode estar parado em um ponto de ônibus ou adiantado para o trabalho], ainda assim ele terá muita dificuldade em desvincular as duas notícias. Primeiro porque, conforme supramencionado, mesmo com um olhar atento, a linha que circula o box é sutil demais para marcar qualquer diferenciação – ao contrário, parece sugerir mais um realce da manchete.

5) Outro ponto que não facilita a compreensão é o texto, mas notemos antes a disposição excessiva de elementos para a manchete: além da chamada principal, temos um chapéu (aquela expressão curta que é anterior ao texto principal), o bigode (a frase abaixo), a linha-fio (uma segunda frase explicativa logo depois do bigode) e um texto explicativo dividido em quatro colunas. Haja informação para tanto recurso, não é mesmo? O problema é que não há. O texto abusa da redundância: apenas nesse pedaço da capa cita o nome de Lula seis vezes (acho que nem Freud explica!), repete termos como “organização criminosa” por três vezes, e faz ao menos duas dezenas de menções negativas com termos como “corrupção”, “quadrilha do PT”, “quadrilhão do PT”, “prejuízos”, “denunciados”, “propina”, etc. Enfim, não se envergonham da pobreza textual em repetir elementos e informações de forma exaustiva em uma única chamada (afinal, o objetivo antiético parece valer mais do que o valor estético, não é mesmo?).

6) Enfim, são raros os leitores que vão chegar até o texto que serve como legenda para a foto no box [como sabemos, uma notícia sem qualquer vínculo com a primeira], afinal, após o bombardeio realizado na manchete, não existe mais dúvida que aquela mala é de Lula e da Dilma e que estão bolivarizando-comunizando-satanizando o Brasil. Mas enfim, advinha o que nosso hercúleo leitor vai encontrar se resistir até a legenda? É mais fácil dizer o que não vai encontrar: qualquer referência que desvincule a imagem publicada do Lula e da Dilma. Ao contrário. O texto fala dos mais de R$ 50 milhões, enaltece por ser a maior apreensão em dinheiro vivo do país e, apenas no final, cita em um tom condicional muito mais leve o nome do envolvido: “[...]teria cedido (o apartamento) para que o ex-ministro Geddel Vieira Lima (PMDB-BA), em prisão domiciliar, guardasse seus pertences”. Notem que o tom é o oposto da manchete, quando a condicional – obrigatória por ética e por lei – é intercalada com afirmações genéricas, mas fortes das fontes como “o esquema causou...”, “é apontada...”.

7) E aí é o grand finale da sacanagem. Você acha que em algum lugar na legenda foi mencionado para o leitor que o Geddel foi ministro do Temer? Pois é. Não fizeram qualquer menção. Deixam na memória a participação dele nos governos petistas. E aí mais uma vez, o leitor comum, que de forma valente chegou até aqui, vai somar dois mais dois e descobrir que isso dá cinco: “essa mala é fruto do lulopetismo” (usando esse termo cômico que está mais na moda nas páginas do Estadão do que a expressão "top" no Facebook).

8) Vou encerrar a análise por aqui, mas não sem antes convidá-los a notar que o “Temer ganha fôlego” em O Globo (também, com amigões assim) e o tamanho da importância que o fechamento da UERJ tem para o jornal, que circula prioritariamente no Rio de Janeiro. A pauta está lá no pé da página, rigorosamente reduzida a nada perto das lágrimas do Maia ou do futebol canarinho.

segunda-feira, 4 de setembro de 2017

Artigo na Revista Sala 206 (ISSN: 2318-7980)


Cinema e publicidade na era pós-massiva: representação da mulher no universo convergente da franquia Star Wars.

63 segundos. Desconsiderando as aparições da Princesa Leia, interpretada pela atriz norte-americana Carrie Fisher (1956 - 2016), esse é o tempo total de fala destinado às demais personagens femininas nos 388 minutos que compõe uma das trilogias mais famosas da história do cinema: os episódios IV, V e VI da saga Star Wars. Mais do que desvelar as relações machistas na produção cinematográfica hollywoodiana, tal dado fomenta uma espécie de angústia, algo como um thaumázein (espanto, perplexidade), quando percebemos que, contraditoriamente, não apenas os três primeiros longas-metragens, mas toda a franquia é um sucesso da indústria do entretenimento também entre as mulheres.

Partindo de tal constatação, torna-se inevitável problematizar: se a construção de um enredo misógino, com a mulher sem fala e sempre à espera de um herói masculino, "deu certo" durante mais de três décadas do ponto de vista comercial, o que justifica a mudança drástica apresentada no sétimo episódio da saga, O Despertar da Força (2015), que traz a personagem Rey, interpretada pela atriz Daisy Ridle, como protagonista? Trata-se de um mero reconhecimento dos produtores à fidelidade do público feminino ou experimentamos, pela primeira vez na história de Star Wars, uma configuração midiática que permite às consumidoras da franquia ter o espaço comunicacional necessário para cobrar de forma efetiva a representatividade que lhes cabe nos produtos culturais?

Alguns dos caminhos para responder a questão estão no artigo publicado nesta edição da Revista Sala 206 como fruto de um trabalho bacanérrimo que orientei da Leticia Carvalho e que segue dando frutos. Para ler na íntegra, clica aqui ó: http://goo.gl/HVpwrU