sábado, 4 de agosto de 2018

O que significa ser um bolsista de pós-graduação da Capes hoje?

Emerson Campos Gonçalves(*)

Se você é uma daquelas pessoas que não faz a menor ideia de como é que o remedinho porreta contra-gripe-braba que toma foi desenvolvido, não se sinta mal por isso. Você é apenas mais um entre milhões neste país que acreditam que o celular grã-fino mais fininho, o motor mais eficiente de seu carrão um.ponto.seis, os remédios que curam de dor na junta à mal olhado e mais um montão de outras coisas que fazem parte desses trecos de "ciência e tecnologia"(**) – dos quais se beneficia diariamente – saíram do progresso natural da humanidade e de ideias geniais oriundas de um espírito sempre superior que ilumina Einsteins e Newtons, que guiados por sua genialidade inata e por seres de outra dimensão conseguem em segundos criar as condições que, aliadas ao financiamento privado da ciência – ah, o poder do capital! [suspiros irônicos] –, nos fazem caminhar a passos largos rumo à imortalidade (ou, ao menos, a um estágio em que seremos algo como homens alados).

Mas não. Não, Maria-Maria. Não, José. Na verdade, e agora José? Pois não é disso que a ciência é feita e tão pouco é para isso [e por isso] que ela caminha. A ciência – aqui, em terras capixabas, ou em qualquer outro lugar do mundo – caminha e é feita de muito, muito, muito suor. De um trabalho hercúleo, incessante e jamais reconhecido de pesquisadoras e pesquisadores escondidos nas assinaturas dos artigos científicos. E, no caso do Brasil, de dinheiro público, financiamento estatal. Sim, porque as empresas quase sempre colocam seus recursos naquilo que já deu certo, só que, pasmem: a ciência não é uma rotina de acertos (por isso não somos, nem tão cedo seremos seres alados), mas, na maioria absoluta do tempo, de tentativas, erros e repetições. Tomando um exemplo que é a-exceção-da-exceção-da-exceção, isso significa dizer que quando uma empresa decide contratar um pós-doutor e financiar sua pesquisa para produzir/desenvolver determinado componente tido como revolucionário, um grupo enorme composto por outros professores, pós-doutores, doutores, mestres, alunos de iniciação científica, estudantes de iniciação científica júnior (etc..) já trabalhou duro em diferentes etapas para que aquele conhecimento chegasse no atual estágio (de "revolucionário"), sempre contando com dinheiro público e estrutura pública. E antes que perguntem: sim! Podem até torcer o nariz, mas tirando a excelência de alguns centros privados, a pesquisa no Brasil acontece prioritariamente dentro das universidades federais e em algumas estaduais: ou seja, ela é pública.

Tá, mas o que é que os bolsistas da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) têm com isso tudo? Simples! Eles são o centro desse processo (***). São a mão-de-obra e o motor. Quem pensa e executa a maior parte das investigações científicas. Fazer pesquisa – seja lá em qual área for, ainda que consideradas as peculiaridades de cada campo do conhecimento – significa dedicação exclusiva na maioria dos casos. Ou seja, é o mesmo que dizer que, depois de quatro, seis anos na faculdade, se você decidir seguir na pesquisa não poderá ingressar no tão idealizado mercado de trabalho, pois a pós-graduação "tomará" todo o seu tempo. Ao contrário, você entrará no famoso limbo, habitado por indivíduos que têm em média entre 25 e 40 anos de idade, em sua maioria já possuem um lar e outras bocas para sustentar, mas que não podem trabalhar já que decidiram ser cientistas e seguir carreira acadêmica.

Esses camaradas supramencionados passarão em média (se tudo der certo entre mestrado, doutorado, pós-doutorado, concursos públicos) mais oito, dez anos da vida deles vivendo das bolsas Capes, lutando para atender as exigências da agência e dos cada vez mais competitivos concursos públicos, para engordar seu currículo Lattes e produzir ciência de qualidade a toque de caixa com pouquíssima grana para financiar os insumos e equipamentos (aliás, outra faceta do processo de desmanche da ciência brasileira acentuado pelo golpe de 2016 com o congelamento dos gastos com a educação).

Se você chegou até este ponto do texto, não se assuste se em algum momento pensou: "está ganhando para estudar e ainda reclama". Trata-se, certamente, de mais um sofismo/acusação extremamente comum com o qual os bolsistas precisam lidar. Acontece que fazer pós-graduação é realmente sinônimo de muito mais estudo (aliás, como todas as carreiras deveriam ser), mas não é só estudo (como, também, em todas as carreiras). É ciência, meu povo. É o que vai te dar a pílula porreta que citei no começo, lembra? É um trabalho seríssimo, com uma pressão absurda, sem folga, sem décimo-terceiro, sem hora para sair e entrar no laboratório/núcleo de pesquisa, sem final de semana, feriado ou férias, sem estabilidade, sem plano de carreira, sem conseguir contribuir com a previdência, sem ser reconhecido como profissional, sem porra nenhuma além do sonho de se tornar um pesquisador, o que na essência você já é, mas constantemente te barram essa informação para lembrar que é apenas um pobre bolsista [algo que soa como uma redundância absurda].

Sobre essa pressão que a pós-graduação traz, os números falam por si: um estudo recente publicado na Nature(****) mostra que estudantes de pós-graduação tem seis vezes mais chance de enfrentar depressão e ansiedade que uma pessoa comum [e aqui nem estou entrando no debate sobre os números de suicídio que seguem sendo um tabu de difícil aferição]. Afinal, embora eu tenha dito que a ciência é marcada naturalmente por tentativas que não dão certo, somos obrigados a acertar [o que é coerente e natural para alguém que vai defender uma dissertação ou tese], mas conviver com isso em determinadas condições se torna insustentável. A grande questão aqui é a forma como a cobrança por esses acertos [ou seja, todas as condições objetivas que cercam o exercício da ciência] são feitas. Falta estrutura, falta grana, falta suporte, falta ética e coerência do próprio sistema, mas não pode faltar o resultado senão o único prejudicado é você mesmo, que terá literalmente perdido uma década da sua vida como "cidadão produtivo" dentro da compreensão daquilo que deve ser a vida ordinária no estado burguês.

Outra afirmativa que os bolsistas Capes sempre escutam é: "mas é a escolha de cada um, ninguém te obrigou a ser pós-graduando". Tudo bem. Somos imprudentes com nós mesmos e como nossa família ao escolher esse caminho em um país que tem uma estrutura burocrática falha como a do Brasil [estrutura essa que permitiu o golpe de 2016]? Com certeza absoluta. Mas o que seria da pesquisa no Brasil se não fosse nosso delírio? E se todos seguíssemos para a iniciativa privada após nos formarmos com louvor na graduação e deixássemos a pesquisa de lado? O que seria da pesquisa no Brasil sem esses delirantes-bolsistas que sequer podem fazer bicos porque vivem de uma bolsa (mais do que nunca sob ameaça) que os obriga à dedicação exclusiva? A resposta é fácil: ela não existiria e, certamente, seríamos um país ainda mais atrasado, dependendo exclusivamente da importação de tecnologia e ciência [e olha que anda difícil vislumbrar algo pior e mais atrasado que o pós-2016].

Falemos de cifras. A bolsa da Capes de mestrado atualmente é de R$ 1.500 e a de doutorado é de R$ 2.200. O valor aparentemente é um luxo pelas condições de vida da maioria da população brasileira. Porém, com esse valor os pós-graduandos precisam não apenas pagar as contas e o aluguel (já que normalmente são indivíduos que estão deslocados de sua família e cidade para pesquisar), como colocar comida dentro de casa e atender as caríssimas exigências que o Lattes impõe, como participar de congressos e publicações nacionais e internacionais (lembro de minha orientadora de mestrado, a querida Ana Elisa Ribeiro, dizendo no primeiro dia de aula que o Lattes era a coisa mais cara que seríamos obrigados a comprar: "o Lattes é caro, muito caro". Como sempre estava certíssima). O último reajuste das bolsas Capes foi em 2013 (à época cobri o assunto como repórter de um jornalão lá pelas bandas das Gerais e lembro de como o alívio anunciado foi bem-vindo pelos pós-graduandos, ainda que o dinheiro não fosse suficiente para "comprar o Lattes"). Pois bem, se era difícil com pouco, imaginem como será com nada.

Em Grande Sertão: Veredas (João Guimarães Rosa), Riobaldo lembra que "uma pergunta, em hora, às vezes, clarêia razão de paz". Então questiono: como a ciência do Brasil viverá sem esses 93 mil bolsistas de pós-graduação da Capes? E, para além disso: como viverão esses 93 mil sem a bolsa? Em tempos sombrios, tempos de golpe, Riobaldo está mais do que certo: "viver é negócio muito perigoso".

(*) Bolsista Capes.

(**) Notem que, ao longo de toda a minha argumentação, sequer mencionei as pesquisas das áreas de Educação, das Ciências Humanas e Ciências Sociais Aplicadas, afinal, no pragmatismo do atual Brasil neoliberal essas certamente seriam taxadas como inúteis, acusação tão falaciosa que sempre me reservo o direito de "deixar pra lá".

(***) É certo que também existem as bolsas CNPq e aquelas das fundações estaduais (como a Fapes, no Espírito Santo), mas essas são minoria perto das bolsas concedidas pela Capes.

(****)T. M. Evans et al. Nature Biotech. 36, 282-284; 2018.