terça-feira, 31 de outubro de 2017

Café filosófico no Nepefil: Intolerância religiosa no Brasil pós-golpe/16


Organização e mediação: Prof. Dr. Robson Loureiro (PPGE/Ufes) / Prof. Me. Emerson Campos (Doutorando PPGE/Ufes) / Luiz Fernando Soares Pereira (Graduando História/Ufes).

quarta-feira, 4 de outubro de 2017

Artigo sobre barbárie e luta de classes na Revista Vitória (ISSN: 2317-4102)


Já são quase quatro anos longe da reportagem e a cada novo texto finalizado - seja ele um artigo científico, ensaio crítico ou simplesmente uma aventura literária - constato como é bom escrever sobre o que acredito sem superficialismos ou brevidades (e aqui falo em termos de conteúdos, conceitos e gêneros). Talvez viva um jovem Marx, jornalista e materialista, cá dentro. Vai saber.

É nesse embalo que, em pleno dia de São Francisco de Assis, compartilho o texto que fui gentilmente convidado (agradeço a lembrança da Andressa Mian) a elaborar para a edição especial da Revista Vitória, da Arquidiocese de Vitória. Em tempos sombrios, com cartazes pregados em poste com sugestões de violência e barbárie (que sempre estoura nos segmentos mais pauperizados da classe trabalhadora), procurei misturar num só causo filosofia, política, cristianismo e ciências da comunicação para problematizar algumas questões. O texto está transcrito abaixo e também em pdf, mas sugiro a revista inteira, que está belíssima em conteúdo e forma (ó: https://goo.gl/KFXqrR).

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O pão do ódio e o esquecimento: a vida-morte do menino Jesus

Como bom mineiro, permitam-me começar com um causo de enredo bem comum: menino pobre, filho de mãe trabalhadeira, final triste. Nada que nunca tenhamos ouvido dizer, não é mesmo?

Parte 01 – Meus becos, meu mundão.
O nome dele era Jesus. Nasceu bem longe das bandas capixabas, lá praqueles lados do Jequitinhonha. Mudou-se para um bairro humilde da Grande Vitória ainda pequenino e era tão acostumado com tudo ao seu redor que, em sua percepção de garoto de dez anos, não via muito sentido em imaginar um mundão maior que aqueles becos. Na verdade, Jesus só lembrava de ter ido a outro lugar ainda muito novinho, quando o pai, motorista, acabou morrendo em um acidente na não-duplicada-BR-101. Depois daquilo só saia mesmo dali para estudar em bairro quase-vizinho. “Sorte escola tão pertinho”, celebrava a mãe, de nome Maria, filha da finada Ana. A verdade é que Jesus não conhecia sequer o bairro de grã-fino da capital onde sua velha trabalhava na casa de uma gente “muito boa e caridosa” – que só não legalizavam a situação da moça por causa dessas coisas chatas de burocracia trabalhista. “É por isso que o Brasil não dá certo”, dizia a patroa exaltando as vantagens da flexibilidade enquanto pedia para Maria ficar com as crianças no fim de semana.

Parte 02 – Pulou a roleta, saltou no cruzamento.
Na mesa, Jesus nunca vira fartura, mas também não vira faltar nada com a multiplicação quase divina do meio salário da mãe. E Jesus, bom aluno ainda que de vez em sempre faltasse um professor ou outro, nunca precisou bater um prego. Devia se dedicar na escola para se formar “doutor”. As coisas até caminhavam, mas a vida não é uma linha perfeita. Sabe aqueles apertos de dar nó na gente? Maria descobriu que estava com câncer. Não tinha plano, entrou na fila do SUS e teve que parar de trabalhar. Sem carteira assinada, não recebia mais o meio salário (quiçá o seguro que nem sabia da existência). Com a coisa apertando, Jesus não segurou a onda e decidiu pedir ajuda. Pulou a roleta e saltou no cruzamento do bairro bacana, cheio daquela gente que parecia gringo. Foi ao semáforo pedir esmola. Os motoristas, porém, aos montes o acusavam: “negrinho malandro, querendo grana para o crack”. Ora ou outra também apareciam os justos que, levando a filha da aula de inglês para o ballet, lembravam: “ao invés de ir capinar um lote prefere ficar pedindo, não vejo problema de criança trabalhar, se não fosse vagabundo desde cedo (...)”.

Parte 03 – A bala de Jair, o patriota.
A esmola foi pouca. Com quase nada e a mãe mal, Jesus foi chamado para o movimento e começou a entregar coisa errada ou outra de cheiro engraçado. A grana começou a chegar, mas ainda era pouco. A situação apertou, a mãe piorou e ele decidiu ajudar a faturar um carro. “Um alemão cheio da grana que revende, a gente só pega e ganha o nosso”, garantiu o bom malandro, outro miserável. E lá foi o menino de dez anos ao encontro de Jair, patriota e conservador. Jair nunca tinha sido assaltado, mas quem é que sabe quando vai precisar de uma arma para defender o patrimônio, não é mesmo? E depois do que tinha acontecido em Vitória, sem polícia nem nada, ele não podia andar mais desarmado. Faltava apenas a oportunidade de exercer seu direito de cidadão de bem. E a bala de Jair foi pelo faro, encontrou Jesus. “Menos um”, disse a senhora que voltava do convento. “Mito”, disparou o homem que caminhava para o culto. Morreu Jesus. Quem vai se lembrar do menino Jesus? Além das mães, mais ninguém.

Após o fim – Perguntas e respostas
O breve causo narrado é fictício, mas baseado em condições reais que têm tencionado a luta de classes em nosso país, levando diferentes formas de violência às camadas mais humildes da sociedade. Entre tais condições estão a retirada de direitos trabalhistas e o congelamento de investimentos nas áreas da saúde e educação. E, ainda que qualquer estória seja simplista demais para explicar a questão, é inegável que a omissão do estado leva ao avanço da fome, exterminando o futuro do nosso menino Jesus, que ao fim são incontáveis e invisíveis meninas e meninos da periferia.

Mas quem se alimenta da morte cotidiana dos nossos jovens? Ou, trazendo o debate para o Espírito Santo, quem se beneficiou com o fim de duas centenas de vidas (barbaramente reduzidas a números) durante a greve da PM no início do ano?

Minha tese é que o ódio foi o vencedor. Servimos pão ao ódio ao esquecer a história de cada um dos mortos. E nossos meios de comunicação são especialistas em garantir tal esquecimento, agendando novos debates emburrecedores através de espetáculos imagéticos mais atrativos e fugazes aos sentidos já atrofiados de nosso Jair.

O Jair do nosso causo, aliás, são homens e mulheres comuns (qualquer um de nós), formados em um contexto cultural onde aprendem que a violência é resolvida com mais violência. Eles acreditam ser fortes, mas são fracos, pois incapazes de qualquer empatia com o diferente por puro medo de mudar. Como diria Dito, personagem de Guimarães Rosa em “Manuelzão e Miguilim”: “Só quem é bronco carece de ter raiva de quem não é bronco, eles acham que é moleza, não gostam... Eles têm medo que aquilo pégue e amoleça neles mesmos – com bondades...”.

No fim não é muito difícil constatar a multiplicação do Jair. Basta lembrar, no meio da crise da segurança, da corrida entre os condomínios por vigilantes armados – preparados ou não – ou olhar, por exemplo, para o absurdo Projeto de Lei 224/2017, que autoriza o porte de arma de fogo para moradores da zona rural.

Outro dia saia da Ufes quando me deparei com um outdoor sugerindo facilidades para o porte e aquisição de armas de fogo. Lembrei da ótima tese de doutorado da professora Flávia Mayer (Ufes) sobre a formação dos indivíduos a partir dos outdoors na cidade e pensei em quantos verão ali uma saída mais fácil. Alternativa, aliás, ratificada pela própria universidade quando ao anunciar a patrulha armada da PM como solução para a violência no campus.

E ao fim, sem qualquer filosofia, eu só fico mesmo pensando onde é que foi parar a história que Jesus (não o nosso, o mais antigo) falava sobre atirar a primeira pedra. Por isso lembro um ‘recado’ dele: “Dou-vos um novo mandamento: Amai-vos uns aos outros. Como eu vos tenho amado, assim também vós deveis amar-vos uns aos outros” (Jo 13: 34). Amai-vos, não armai-vos, entendeu!?