quarta-feira, 5 de abril de 2017

A origem do ódio de Jair Bolsonaro aos quilombolas (artigo de opinião)

 Quilombo de Ivaporunduva é exemplo de organização comunitária.
Foto: Emerson Campos (OUT/2014)

A origem do ódio de Jair Bolsonaro aos quilombolas (05/04/17) Escrevo este breve artigo doze horas depois de testemunhar, através de relatos e vídeos publicados em diferentes portais de notícia, o gravíssimo ataque racista praticado pelo deputado federal Jair Bolsonaro (PSC-RJ) contra as comunidades quilombolas – logo, redijo ainda no calor do “incômodo” [para não dizer outro termo menos elegante].

Preciso concordar que não existe uma grande novidade na pauta, afinal, todos nós, progressistas, sabemos que o parlamentar em questão adota práticas e discursos conservadores que estão impregnados de machismo, misoginia, homofobia... e por aí vai. Na verdade, a turma reaça também sabe disso, só finge que não, pois compartilha das mesmas opiniões. Portanto, é imperativo entendermos que não lidamos com um, mas – por mais nefasta que a imagem possa parecer – com uma massa acéfala e amorfa de “Bolsonaros”. Daí a importância de entender o ódio que move essa gente, evitando a naturalização de qualquer modus operandi fascista.

As origens para o discurso e as práticas de ódio são diversas e não têm uma explicação simples, mas certamente passam por uma sociedade doente, composta por indivíduos semiformados (do alemão “halbbildung”), incapazes de agir e pensar criticamente. No referido contexto, podemos dizer que Bolsonaro e sua trupe se enquadram perfeitamente naquilo que o filósofo e sociólogo frankfurtiano Theodor Adorno (1903-1969) chamou de síndrome fascista (ou da personalidade autoritária), fenômeno sóciopsicológico caracterizado pela identificação com as elites, pelo preconceito étnico e racial, pela obsessão em relação à sexualidade, pela agressividade reprimida e pelo sadomasoquismo.

Destarte, considerando tal cenário, um caminho importante para entender o ódio seria buscar as raízes nos perseguidores e não nas vítimas, reconhecendo os mecanismos objetivos e subjetivos que tornam as pessoas capazes de cometer atos tão bárbaros como o racismo. Porém, como isso não é possível dada a condição histórica do sujeito em questão (em termos menos rebuscados, a indisposição do deputado e de seus seguidores para qualquer diálogo), um caminho possível para entender suas ações – e, neste caso específico, a origem do ódio aos quilombolas – é identificar na própria vítima (por mais estranho que isso possa parecer) quais condições objetivas provocam tanto “terror” na extrema-direita brasileira.

Para listar tais pontos, recorri às anotações e gravações da viagem que realizei em outubro de 2014 à Comunidade Quilombola de Ivaporunduva, no Vale do Ribeira (Eldorado, SP), a mesma ofendida por Jair Bolsonaro em sua fala na Hebraica ontem. Na ocasião, eu ainda atuava como Analista de Comunicação Social em um projeto de mitigação ambiental, mas já desenvolvia as bases do que se tornaria meu primeiro projeto de tese, por isso acabei anotando bastante coisa. Neste sentido, a partir dos registros que fiz, listei as seis aparentes condições que alimentam o ódio do parlamentar contra os quilombolas, a saber:

i) História de luta e efetiva distribuição de renda. A comunidade de Ivaporunduva foi fundada no século XVII, venceu o regime escravocrata e luta há séculos contra uma sociedade marcada pela desigualdade e pelo preconceito racial. Em meio a tantas batalhas, lá existe uma coerência absurda com o que se diz e a práxis. Se o deputado de fato esteve lá como afirma, o que ele viu certamente foi um dos mais bonitos e importantes exemplos que meus olhos já puderam testemunhar em solo brasileiro de organização comunitária e efetiva distribuição de renda entre os moradores.

ii) Importância do acesso às políticas sociais. Mas nem sempre o diagnóstico apresentado acima – com alguma renda para ser distribuída – foi a realidade. O quilombo de Ivaporunduva também é um exemplo da importância do acesso aos programas sociais. Até o início do governo Lula, em 2002, a coisa era diferente por lá. Foi na Capela Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos de Ivaporunduva, datada de 1775, que Benedito da Silva, mais conhecido como Seu Ditão, um dos líderes mais antigos da comunidade, me relatou: "Antes nem todos os dias tínhamos arroz na mesa. Hoje, com o acesso às políticas públicas e o fortalecimento da associação dentro do quilombo, a coisa é diferente. Pode olhar aí, quase toda família tem seu carro novo na garagem".

iii) Esvaziamento da falácia sobre “assistencialismo imediatista”. Outro relato que registrei é que o primeiro programa social ao qual tiveram acesso foi o de distribuição de cestas básicas. Com a garantia da comida na mesa em uma quantidade mínima para se trabalhar com dignidade, os quilombolas utilizaram esse primeiro programa como impulso para se organizar de forma comunitária (e não como ponto final do percurso, como maldosamente prega a direita brasileira), procuraram novas formas de gerar recurso e descobriram, também através do acesso às políticas públicas, que tinham potencial para a agricultura familiar. Iniciaram o cultivo de banana orgânica e passaram a vender a fruta para o governo fornecer como merenda nas escolas públicas. Desde então, cancelaram o recebimento da cesta básica que já não era mais necessária e investiram, também, na produção de derivados da banana, cabendo à associação comunitária coordenar todo o sistema de divisão da receita que a agricultura gera.

iv) Resistência ao assédio do capital privado em áreas de preservação ambiental e cultural. Outra área de atuação importante dos quilombolas do Vale do Ribeira é o ecoturismo. Os quilombos estão cravados no coração de uma reserva de mata atlântica com cachoeiras lindíssimas e inúmeras cavernas, área extremamente assediada por grupos privados que buscam explorar o potencial turístico. Os quilombolas rejeitaram as investidas do capital externo e construíram sua própria pousada. Na região do parque, eles se organizaram e montaram a equipe responsável por guiar os visitantes. À época, Seu Ditão me narrou: "se tivéssemos aceitado a interferência e gestão externa do nosso território quando descobriram esse potencial turístico, essa natureza provavelmente não estaria mais aí".

v) Participação política efetiva e ocupação dos espaços com a pauta quilombola. Os líderes das comunidades quilombolas do Vale do Ribeira participam ativamente do movimento nacional dos quilombolas através da CONAQ (Coordenação Nacional das Comunidades Quilombolas), ocupando cargos na diretoria e presidência. Muitos cursaram graduação e pós-graduação nas melhores universidades públicas do país e levam todo o conhecimento para dentro da comunidade, contribuindo para a organização social do espaço e para a luta quilombola. Na comunidade, os jovens participam das decisões dentro da associação a partir dos 16 anos de idade, permitindo uma formação para o debate nos espaços púbicos e a participação crítica como cidadãos ou líderes comunitários.

vi) O operário barbudo. Um dos grandes problemas estruturais que o quilombo de Ivaporunduva enfrentou ao longo de sua história foi o acesso até a cidade através do rio. Um barbudo operário certa vez passou por lá e percebeu a importância de se construir uma ponte nova para melhorar a vida da comunidade. Ele comentou que, se um dia acontecesse o inesperado fato de um operário se tornar presidente da República, iria dar um jeito de fazer a tal ponte. Ele inaugurou a ponte pessoalmente em 2010.

Como disse anteriormente, a origem do ódio é multifacetada e complexa, mas objetivamente podemos tomar os fatos descritos acima como explicação parcial da aversão dessa massa de “Bolsonaros” aos quilombolas. Afinal, os quilombolas do Vale do Ribeira são apenas um entre incontáveis exemplos que comprovam a determinação do povo negro em uma luta de resistência contra a desigualdade, pelo direito do acesso às políticas sociais e pela preservação do patrimônio natural, histórico e cultural das comunidades tradicionais. Eles representam tudo que o Bolsonaro mais teme (e por isso tem ódio): a força do povo humilde brasileiro.

Eu, da minha parte, só posso agradecer. Às companheiras e aos companheiros de Ivaporunduva, obrigado pelo aprendizado sem igual que vocês me proporcionaram naquela conturbada semana pré-eleições em 2014. Vocês são a prova viva da vitória da utopia sobre a barbárie. E viva Zumbi!
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Artigo sobre o selfie e a morte da experiência na Revista Vitória (ISSN: 2317-4102)

O selfie e a morte da experiência: o dia em que viramos de costas para o Santo Padre.
 
Celulares parecem mais relevantes que a realidade.
Foto: Emerson Campos (JAN/2017)

Uns ou outros podem até contestar, mas precisamos admitir que, via de regra, sair para jantar com a pessoa querida ou conhecer uma nova cidade já não parece ter a mesma magia sem um celular carregado e com acesso à internet. Isso porque, viciados em imagens, acreditamos cegamente que é preciso registrar e compartilhar cada momento para garantir sua validade. O resultado disso? Estamos matando a experiência com selfies.

Sei que a tese supracitada pode parecer desconcertante, mas permitam-me explicar. Enquanto contemporâneos às redes sociais online, nossa existência se dá em uma sociedade marcada pela supersaturação dos nossos sentidos a partir de uma multiplicação exponencial de imagens que superam de maneira imensurável nossa capacidade de consumi-las. O resultado de tal frenesi, conforme analisa o filósofo Christoph Türcke, é que experimentamos um descolamento no sentido fisiológico daquilo que anteriormente significou sensação: hoje a ‘imagem sensacional’ parece valer mais que o sentir.

E assim, na busca de alimentar o corpo com sensações imagéticas, inventamos, sem perceber, novo sentido semântico para o verbo ‘existir’. Tal como ocorreu com Gregor Samsa, personagem kafkaniano metamorfoseado em um gigantesco inseto, testemunhamos a famosa citação de René Descartes (1596-1650) ressurgir com uma assustadora e cascuda reinauguração terminológica: “posto, logo existo”.

Trocando em miúdos: você e seus amigos se reencontram após anos e, ao invés de conversar, tratam logo de passar a noite tentando o selfie perfeito; ou o pênalti decisivo para o seu time é marcado e, mesmo no estádio, você assiste à cobrança pela tela do celular enquanto filma. Estariam as imagens vencendo o real?

Muitos filósofos contemporâneos defenderão que é a virtualização do real. Eu não diria isto. Acredito sim que falamos da dura vitória da vivência rasteira (Erlebnis) sobre a experiência verdadeira (Erfahrung), como já constatava o filósofo Walter Benjamin (1892-1940) à sua época. Ou, talvez, da postergação da experiência autêntica para uma experiência forjada a ser vivida em outro momento na tela.

Permitam-me ilustrar com um breve relato. No último janeiro estive com minha família na audiência com o Papa Francisco, no Vaticano. Haviam aproximadamente cinco mil presentes. O objetivo de todos era ver o Santo Padre e ouvir sua mensagem, correto? Errado. Em sua maioria, os fiéis buscavam o melhor ângulo, a melhor foto. Ao invés de experenciar a presença do Sucessor de Pedro, a maioria preferiu dedicar os esforços à produção de imagens que permitissem, em um momento posterior, verificar se tinham conseguido estar ou não com o Papa. Teve quem virasse de costas em sua passagem para tentar um selfie. Por isso, por mais dura que a tese neste artigo possa parecer, é preciso destacar que mais devastadoras são as consequências da vitória do selfie sobre a experiência. E não há uma grande solução a ser proposta, a não ser: na próxima viagem, deixe o celular o maior tempo possível desligado. A lembrança do momento será muito mais rica que qualquer imagem
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