quarta-feira, 5 de abril de 2017

Artigo sobre o selfie e a morte da experiência na Revista Vitória (ISSN: 2317-4102)

O selfie e a morte da experiência: o dia em que viramos de costas para o Santo Padre.
 
Celulares parecem mais relevantes que a realidade.
Foto: Emerson Campos (JAN/2017)

Uns ou outros podem até contestar, mas precisamos admitir que, via de regra, sair para jantar com a pessoa querida ou conhecer uma nova cidade já não parece ter a mesma magia sem um celular carregado e com acesso à internet. Isso porque, viciados em imagens, acreditamos cegamente que é preciso registrar e compartilhar cada momento para garantir sua validade. O resultado disso? Estamos matando a experiência com selfies.

Sei que a tese supracitada pode parecer desconcertante, mas permitam-me explicar. Enquanto contemporâneos às redes sociais online, nossa existência se dá em uma sociedade marcada pela supersaturação dos nossos sentidos a partir de uma multiplicação exponencial de imagens que superam de maneira imensurável nossa capacidade de consumi-las. O resultado de tal frenesi, conforme analisa o filósofo Christoph Türcke, é que experimentamos um descolamento no sentido fisiológico daquilo que anteriormente significou sensação: hoje a ‘imagem sensacional’ parece valer mais que o sentir.

E assim, na busca de alimentar o corpo com sensações imagéticas, inventamos, sem perceber, novo sentido semântico para o verbo ‘existir’. Tal como ocorreu com Gregor Samsa, personagem kafkaniano metamorfoseado em um gigantesco inseto, testemunhamos a famosa citação de René Descartes (1596-1650) ressurgir com uma assustadora e cascuda reinauguração terminológica: “posto, logo existo”.

Trocando em miúdos: você e seus amigos se reencontram após anos e, ao invés de conversar, tratam logo de passar a noite tentando o selfie perfeito; ou o pênalti decisivo para o seu time é marcado e, mesmo no estádio, você assiste à cobrança pela tela do celular enquanto filma. Estariam as imagens vencendo o real?

Muitos filósofos contemporâneos defenderão que é a virtualização do real. Eu não diria isto. Acredito sim que falamos da dura vitória da vivência rasteira (Erlebnis) sobre a experiência verdadeira (Erfahrung), como já constatava o filósofo Walter Benjamin (1892-1940) à sua época. Ou, talvez, da postergação da experiência autêntica para uma experiência forjada a ser vivida em outro momento na tela.

Permitam-me ilustrar com um breve relato. No último janeiro estive com minha família na audiência com o Papa Francisco, no Vaticano. Haviam aproximadamente cinco mil presentes. O objetivo de todos era ver o Santo Padre e ouvir sua mensagem, correto? Errado. Em sua maioria, os fiéis buscavam o melhor ângulo, a melhor foto. Ao invés de experenciar a presença do Sucessor de Pedro, a maioria preferiu dedicar os esforços à produção de imagens que permitissem, em um momento posterior, verificar se tinham conseguido estar ou não com o Papa. Teve quem virasse de costas em sua passagem para tentar um selfie. Por isso, por mais dura que a tese neste artigo possa parecer, é preciso destacar que mais devastadoras são as consequências da vitória do selfie sobre a experiência. E não há uma grande solução a ser proposta, a não ser: na próxima viagem, deixe o celular o maior tempo possível desligado. A lembrança do momento será muito mais rica que qualquer imagem
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