Portfólio: manifestações de 2013


A cobertura das manifestações em junho de 2013, durante a Copa das Confederações, foi, sem dúvidas, uma das mais intensas e de maior aprendizagem em minha carreira (e de toda minha geração de repórteres). Com jornadas que ultrapassaram as 24 horas ininterruptas de trabalho, tive o desafio de abastecer o Portal Uai da rua com relatos minuto a minuto e imagens dos principais pontos de conflito em Belo Horizonte, do amanhecer até a última bomba na madrugada. Um dos dias mais intensos foi o 23 de junho, um sábado. Entre pedradas, tiros de bala de borracha e inúmeras bombas de gás lacrimogêneo, eu e o amigo Daniel Silveira atravessamos a cidade a pé para reportar em primeira pessoa as tristes cenas que testemunhamos na ocasião. O texto completo está disponível no em.com.br. Abaixo segue a parte da crônica que assino:

Da festa ao caos.

Estado de Minas. Por Emerson Campos.
22 de junho de 2013. Dia com manhã calma, mas tarde e noite complicadas de descrever. Acompanhado pelo colega Daniel Silveira, cortei a capital mineira a pé. Duas vezes. O objetivo era cobrir uma manifestação com pinta para ser histórica. O que, de fato e infelizmente, ocorreu. Explico o porquê. Na ida do Centro de Belo Horizonte rumo ao Mineirão, passando pelo Viaduto A e subindo pela Avenida Presidente Antônio Carlos, o sentimento era de alegria e admiração pela reunião recorde de estudantes. E não eram só eles. Senhores, famílias completas e muitas crianças faziam um ato cívico invejável, com gente de todas as classes, tribos e tipos, gritando por pautas diversas, mas justas. Porém, na volta, o sentimento mudou e a tristeza tomou conta. Quem desceu os 6,5 quilômetros seguindo o mesmo caminho, depois das 20h, testemunhou uma cidade destruída, com inúmeras marcas deixadas por atos de vandalismo e violência. O grupo responsável pelos ataques, antes tímido, ganhou corpo e tornou temeroso o protesto. O que se viu foi muito fogo e pouca inteligência.

Estive nos três lados possíveis do confronto: atrás dos manifestantes, na retaguarda da barreira montada pelos militares e no meio do fogo cruzado. A praça de combate, como na última segunda-feira, foi o Viaduto José Alencar. O ato pacífico seguiu até ali e só. A divisão aconteceu e a sensação é de que o céu acinzentou. Um grupo de cerca de três mil pessoas, que marchava à frente, seguiu reto, caminhando calmamente em direção ao destino acordado, na Lagoa da Pampulha, enquanto uma minoria dobrou a via para se posicionar rente ao bloqueio feito pela PM na Avenida Antônio Abrahão Caram. Ali me separei do Daniel. Só voltaríamos a nos encontrar depois do confronto começar, já que a minoria rapidamente se multiplicou em milhares.

O combinado era que eu seguiria em frente, acompanhando o trajeto inicial. No entanto, ao andar um pouco mais, por cerca de dez minutos, senti o segundo arrepio do dia, ao olhar para trás e notar a avenida completamente tomada - o primeiro havia sido durante a marcha inicial, quando um homem desceu de rapel no Viaduto Angola e hasteou a bandeira do Brasil em cena inesquecível. Quando observei o horizonte, tive a dimensão de que pelo menos 100 mil pessoas tinham saído às ruas. Foi quando decidi voltar para esperar os demais e percebi que os bandidos eram muitos e haviam dominado a frente do movimento. Na terça-feira testemunhei o tal grupo de mascarados aterrorizar o Centro de Belo Horizonte, mas eles mal conseguiam fechar o cruzamento da Avenida Afonso Pena com as ruas Tamoios e Espírito Santo. Neste sábado, eles eram mais de três mil e estavam armados, com bombas, pedras e quaisquer objetos capazes de ferir militares e civis, dispostos a se aproveitar da abertura de pautas oferecida pelo movimento para pregar a violência. E eles corriam em direção aos militares.

Num gesto meio impensado, decidi me adiantar à frente do grupo criminoso que avançava sobre os policiais. A ideia era ficar ao lado da ação, próximo à grade, registrando o confronto, o que inicialmente foi possível. No entanto, depois de aproximadamente 20 minutos de ataques covardes praticados pelos mascarados - dos quais minha posição me livrava -, a PM respondeu. Gás lacrimogênio arde e a primeira bomba estourou ao meu lado. Assustei e desci em carreira em direção à Antônio Carlos, escutando discursos dos mais absurdos. "Está vendo, é assim que eles nos protegem", berrou uma jovem que devia ter menos de 15 anos. Ora, até eu, com os olhos escorrendo, entendi a necessidade imposta pelo momento. Aí, numa rápida olhada para cima, me peguei atrás dos vândalos e à frente da gente de bem, entendendo a sensação de quem está posicionado com os olhos para a Topa de Choque. Veio a segunda resposta do batalhão. Para quem está do outro lado, porém atrás da "Faixa de Gaza", a sensação realmente é de medo e parece claro que a polícia está avançando. Pode acontecer, mas hoje não - ao menos onde eu estava. Era só a sensação, porque quem continuava atacando ali eram os vândalos, que recebiam resposta na medida. Não posso dizer dos outros lugares e é extremamente complexo avaliar se houve excesso, mas naquele ponto, o mais crítico, foi assim.

Ao recuar um pouco, me peguei sentado à beira do viaduto de onde um jovem caiu na segunda-feira. Lembro de ter pensado em como ali era alto e, ao perceber nova correria, decidi sair daquele ponto, passar pela área de confronto e me posicionar atrás da barreira militar, onde estavam os demais jornalistas. Deu tempo de correr antes de alguma confusão no ponto crítico. Infelizmente, três jovens não tiveram a mesma sorte, ficando dois em estado grave. Mais acima, abaixado por causa das pedradas, mostrei minha credencial do Estado de Minas, furei o bloqueio e reencontrei o Silveira. Eu e ele reclamávamos de sinal e bateria dos celulares, respectivamente, quando surgiu uma nova onda de ataques, dos dois lados, e começou a aparecer gente machucada. Um senhor passou com a cabeça sangrando. Depois um homem. E outro, este com a perna ferida pelos estilhaços que a bomba de efeito moral produz. Um escudo da tropa de choque se partiu com uma bomba caseira, elaborada com bola de sinuca. E assim a fumaça subiu e a cavalaria chegou. A notícia que chegava da redação era de que comércios tinham sido depredados mais abaixo, mas não tinha como descer.

A Polícia Militar avançou e as coisas pareciam mais calmas, apesar da certeza e obviedade de que tinha gente machucada. Foi então que descemos e fomos surpreendidos por nova onda de gás, a mais forte de todas. Não foi nova bomba, mas o resíduo químico que se solidifica e espalha pelo ar quando um carro passa na via. Mesmo conhecendo a orientação de não coçar os olhos, a vontade foi irresistível. Vi uma concessionária destruída e água jorrando de um jardim. Corri até lá e molhei o rosto, o que aliviou, para depois piorar. Daniel me acompanhou e também se arrependeu do feito. Custou, mas depois de alguns minutos pudemos abrir os olhos e observar o cenário de absoluta destruição. Eram cinco lojas de veículos, todas alvo dos ataques. Tinha desde computador partido na rua até carro destruído. Nenhuma vidraça no lugar. Um menino ainda tentava salvar o HD da máquina para furtá-lo. Entre nós, surgiu o Caveirão da Polícia Militar, que infelizmente precisou estrear. Aí começou nosso retorno.

Nos antecipamos aos militares e mais uma vez lá estávamos nós, no meio da multidão. E começou a descida. Quem era de bem, tentava apagar o fogo, tirar os móveis do meio da rua, arrastar para o canteiro as placas e grades destruídas. Todos com semblante triste, em silêncio. Alguns ainda gritavam palavras irritantes, destacando que sem violência não há revolução. Pensei ser melhor ignorar. Andamos rápido, mas no meio do caminho uma pausa foi inevitável para descansar o pé cheio de bolhas. A cada metro vencido, a tristeza aumentava. Não sobrou radar em pé. Nem placa, nem vidro. A segunda-feira para os lojistas da avenida será de calculadora na mão, somando prejuízos. Entre xingamentos, frases vazias, fogueiras em placas, materiais e máquinas para o BRT, chegamos ao Centro de BH. Lá, nova praça de combate.

Do que ocorreu no Centro não vimos muito. A sensação de insegurança era forte. "Suas máscaras não aguentam o gás lá da Praça Sete", nos alertou um militar que tentou impedir a passagem. Demos a volta e usamos outro caminho, vimos mais quebradeira, mais pessoas de bem desesperadas, presas em prédios. Ficamos ao máximo que nossas forças e baterias aguentaram. Aí retornamos à redação pensando em como contar o dia. Por fim, uma ligação. Um jovem pós-graduando, de 26 anos, telefonou à redação denunciando o que nossos olhos não presenciaram. Segundo ele, às 23h, quando eu já escrevia este texto e os arruaceiros depredavam outros pontos da cidade, militares da Força Nacional de Segurança atacaram manifestantes que passavam pela Praça Sete, já próxima da tranquilidade, com mais bombas e golpes de cassetete. Mais um entre tantos finais tristes para um dia que começou extremamente bonito, com estudantes mostrando sua força, e desandou.

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