Não precisa ter mestrado em estudos de linguagens, nem estudar análise do discurso ou ser um semioticista para enxergar o atentado óbvio – contra o bom jornalismo, contra a nossa inteligência, contra a honra do ex-presidente Lula e da ex-presidenta Dilma, contra o Brasil e os brasileiros – que a capa de O Globo promove na edição desta quarta-feira, 06 de setembro de 2017.
Se um estudante de jornalismo – de qualquer período, seja calouro ou veterano – me apresenta como trabalho de uma disciplina um jornal com edição semelhante, ganha de presente uma prolongada explicação sobre o porquê de não se separar dois assuntos que são da mesma editoria, porém são absolutamente distintos [cada qual com condições objetivas e tempos próprios de apuração perante o estado de direito], com única e exclusivamente uma linha de traço fino e quase transparente. De brinde, eu provavelmente orientaria o jovem a ler talvez um Nietzsche, talvez um Adorno (é melhor a Filosofia nesses momentos) para mostrar o óbvio: o perigo ético em servir um mexidão de notícias na capa do jornal. Foi em uma comunidade quilombola que, certa vez, com sabedoria um mestre de jongo me explicou: “é que nem arroz com angu e frango, você tem que comer uma coisa de cada vez, se não fica sem conhecer o gosto de cada alimento”. Lá eles gostam de provar e conhecer o sabor de cada informação do prato. O mesmo deveria valer para o bom jornalismo.
Enfim, a hipótese acima é no caso de um estudante. Pensando que um repórter, diagramador, editor de capa, ou uma equipe de edição (como provavelmente foi o caso) me apresente situação semelhante, acho que não teria a mínima paciência para sequer avaliar (só caberia a recusa em publicá-la). É que não cabe muita explicação quando imaginamos a prática profissional do jornalismo, pois, além de apresentar uma estrutura textual pobre e de falhar miseravelmente na hierarquização das notícias (nem vou entrar nesse assunto porque já seria outra análise, mas na soma das condições objetivas com todos os critérios e valores-notícias que possam ser considerados também temos uma capa grotesca), as escolhas de O Globo levam a uma leitura direcionada, sugerindo e consolidando no leitor associações equivocadas e extremamente perigosas.
Normalmente acho a intenção de O Globo sempre tão explícita com esse tipo de capa, que já não gasto mais meu tempo com o jornal. Mas hoje achei necessária uma rápida análise crítica (de quem estuda um pouquinho o assunto) em oito tópicos. De forma didática é o seguinte...
1) Para a análise consideremos o olhar ligeiro do leitor comum – e entenda aqui um leitor esporádico (segundo a Pesquisa Brasileira de Mídia de 2016, apenas 8% dos brasileiros leem jornal todos os dias). Ao passar em frente a banca de jornal, nosso leitor perceberá claramente em um primeiro contato visual que a capa de O Globo está dividida em dois grandes blocos: a manchete com a foto principal e abaixo “o resto” (notícias de menor relevância: das quais ele só apreende nessa primeira mirada a foto do futebol e a charge, que despertam de forma mais efetiva o sentido da visão a partir das cores). Vale ressaltar que a percepção desses dois blocos só será possível em alguns estabelecimentos, uma vez que, por insistir no formato Standard (ainda que não tenha conteúdo para isso), O Globo provavelmente estará dobrado e o leitor terá acesso apenas ao topo da capa.
2) Depois das frações de segundo desse primeiro momento (visualizando a página inteira ou apenas a primeira metade), ao iniciar a leitura – que é praticamente automática – a associação imediata do olhar de um leitor ocidental (que devora os textos da esquerda para a direita, de cima para baixo) será entre as palavras Lula, Dilma, PT, organização criminosa e a imagem da mala de dinheiro (ora, mas que foto perfeita para garantir que o sentido desejado pelos editores na manchete será comprado pelo leitor, não é mesmo!?).
3) O terceiro ponto é que a vida segue. Já parou para pensar em quantos milhares de pessoas passam em frente a banca de jornal, observam essa capa de forma apressada, assimilam aquela informação e seguem a vida sem comprar o impresso (não que o conteúdo interno vá melhorar muita coisa). Pois é. A relação de consumo da maioria absoluta já acabou aí e O Globo já fez o estrago que queria.
4) Supondo que o leitor não seguiu sua vida e decidiu parar para ler o texto abaixo da manchete ou presente no box da foto [ele pode estar parado em um ponto de ônibus ou adiantado para o trabalho], ainda assim ele terá muita dificuldade em desvincular as duas notícias. Primeiro porque, conforme supramencionado, mesmo com um olhar atento, a linha que circula o box é sutil demais para marcar qualquer diferenciação – ao contrário, parece sugerir mais um realce da manchete.
5) Outro ponto que não facilita a compreensão é o texto, mas notemos antes a disposição excessiva de elementos para a manchete: além da chamada principal, temos um chapéu (aquela expressão curta que é anterior ao texto principal), o bigode (a frase abaixo), a linha-fio (uma segunda frase explicativa logo depois do bigode) e um texto explicativo dividido em quatro colunas. Haja informação para tanto recurso, não é mesmo? O problema é que não há. O texto abusa da redundância: apenas nesse pedaço da capa cita o nome de Lula seis vezes (acho que nem Freud explica!), repete termos como “organização criminosa” por três vezes, e faz ao menos duas dezenas de menções negativas com termos como “corrupção”, “quadrilha do PT”, “quadrilhão do PT”, “prejuízos”, “denunciados”, “propina”, etc. Enfim, não se envergonham da pobreza textual em repetir elementos e informações de forma exaustiva em uma única chamada (afinal, o objetivo antiético parece valer mais do que o valor estético, não é mesmo?).
6) Enfim, são raros os leitores que vão chegar até o texto que serve como legenda para a foto no box [como sabemos, uma notícia sem qualquer vínculo com a primeira], afinal, após o bombardeio realizado na manchete, não existe mais dúvida que aquela mala é de Lula e da Dilma e que estão bolivarizando-comunizando-satanizando o Brasil. Mas enfim, advinha o que nosso hercúleo leitor vai encontrar se resistir até a legenda? É mais fácil dizer o que não vai encontrar: qualquer referência que desvincule a imagem publicada do Lula e da Dilma. Ao contrário. O texto fala dos mais de R$ 50 milhões, enaltece por ser a maior apreensão em dinheiro vivo do país e, apenas no final, cita em um tom condicional muito mais leve o nome do envolvido: “[...]teria cedido (o apartamento) para que o ex-ministro Geddel Vieira Lima (PMDB-BA), em prisão domiciliar, guardasse seus pertences”. Notem que o tom é o oposto da manchete, quando a condicional – obrigatória por ética e por lei – é intercalada com afirmações genéricas, mas fortes das fontes como “o esquema causou...”, “é apontada...”.
7) E aí é o grand finale da sacanagem. Você acha que em algum lugar na legenda foi mencionado para o leitor que o Geddel foi ministro do Temer? Pois é. Não fizeram qualquer menção. Deixam na memória a participação dele nos governos petistas. E aí mais uma vez, o leitor comum, que de forma valente chegou até aqui, vai somar dois mais dois e descobrir que isso dá cinco: “essa mala é fruto do lulopetismo” (usando esse termo cômico que está mais na moda nas páginas do Estadão do que a expressão "top" no Facebook).
8) Vou encerrar a análise por aqui, mas não sem antes convidá-los a notar que o “Temer ganha fôlego” em O Globo (também, com amigões assim) e o tamanho da importância que o fechamento da UERJ tem para o jornal, que circula prioritariamente no Rio de Janeiro. A pauta está lá no pé da página, rigorosamente reduzida a nada perto das lágrimas do Maia ou do futebol canarinho.
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