Para grande
parte dos moradores de bairros mais nobres, a violência foi descoberta no
último sábado. Para a periferia, ela é o cotidiano
Foto: Tânia Rêgo/ABr (Reprodução DomTotal)
Nota. Texto escrito para o Portal DomTotal. Publicado também no Diário do Centro do Mundo.
Desde sábado, o Espírito
Santo – diga-se de passagem, quase sempre preterido nas manchetes nacionais por
qualquer assunto desimportante que garanta audiência – ganhou notoriedade em
diferentes veículos da mídia tradicional no país com o estouro da greve da
Polícia Militar, movimento que, camuflado pela encenação de familiares
bloqueando a saída dos batalhões e companhias, esvaziou em sua totalidade o
efetivo da corporação das ruas.
Uma
proliferação dantesca de furtos, assaltos, arrombamentos, arrastões e
homicídios pelas ruas do estado. Só mortes, até o fechamento deste texto, foram
75. Número suficientemente estarrecedor (e, sobretudo, próximo no sentido
geográfico) para convencer a classe média de que foi descoberto algo digno de
se gritar, a plenos pulmões, eureca:
–
Inventou-se a barbárie capixaba!
Tal
percepção está ilustrada na coluna de opinião publicada na última terça-feira,
07 de fevereiro, no jornal A
Gazeta (ES), que constata em
tom indignado: “a rotina do capixaba virou um filme de terror”.
O
registro supracitado só ajuda a corroborar uma certeza autoritária entre os
moradores dos bairros mais abonados do estado: é preciso buscar o remédio que
coloque fim neste longa-metragem macabro, ‘novidade absurda’ que brotou nos
últimos dias.
Destarte
– como a miséria do espírito humano e a falência do nosso modo de vida sempre
podem superar a mera aparência dos números –, outra consequência da greve é a
multiplicação, em velocidade exponencial, dos grupos de justiceiros e dos
mantras fascistas de indignação, quase sempre resumidos na repetição de uma só
palavra por três vezes, como dão testemunho incontáveis vídeos gravados pela
cidade a cada batedor de carteira detido por ‘populares’:
–
Mata, mata, mata!
Mais
uma vez, eureca. Em uma lógica quase irrefutável na mente dos justiceiros,
surge a cura da violência que bate à porta: mais violência. E assim caminha
grande parte da classe média capixaba, tal como Otto Adolf Eichmann, engenheiro
nazista descrito por Hannah Arendt como um “bom pai de
família”, mas que foi capaz de projetar todo o sistema de extermínio em
Auschwitz. Um homem amoroso e atento aos seus, mas cego com quem acreditava ser
diferente. Tudo em nome do bem-estar do grupo.
Sei
que o diagnóstico é duro e a descrição até este ponto do texto marcada – em
parte considerável – pela ironia. Mas é para ser, pois quase sempre faltam
recursos textuais a qualquer um que pretenda descrever o absurdo. E (repetindo
palavras) mais absurda que a própria situação – e aqui não
estou discutindo as motivações ou a legitimidade do movimento dos policiais
militares, tampouco a gravidade dos crimes cometidos nas ruas – é a aceitação
do discurso (elaborado e amplamente divulgado por toda a mídia) de que a
violência começou no último sábado e vai acabar quando a PM voltar. Não vai.
Para grande parte da
classe média, a barbárie pode ter tido início no último sábado. Para a
periferia, ela é o cotidiano. Os jornais só não mostram isso.
E
se a imprensa não cobre como deveria, imagino que deva ser mesmo difícil para
alguns grupos sociais aceitar que o medo, a violência e a barbárie fazem parte
do dia-a-dia do Espírito Santo, sobretudo para quem nunca entrou em um bairro
de periferia dominado pela disputa do tráfico de drogas, onde o estado não
chega de forma alguma, a não ser fardado (e normalmente em condições não
amistosas, para não dizer outra coisa).
Outro
ponto a ser considerado é que (salvo raríssimas publicações e a desgosto dos
excelentes repórteres que habitam as redações do ES, muitos dos quais tenho
orgulho de ter sido colega ou professor) a imprensa capixaba vive em função da
apuração pelo Boletim de Ocorrência. Isto significa que a despeito de todo o
esforço de cobrir as cenas de homicídio (que posso testemunhar que existe), os
critérios de notícia ainda são os mesmos de um século atrás, bem como os
vínculos econômicos e políticos. Em outros termos: cobre-se jornalisticamente o
resultado, jamais a causa do problema.
Por
isso, neste momento que deveria ser marcado pela reflexão, mas que tem sido
preenchido por certezas conservadoras, proponho, a partir da dura constatação
de um problema de interpretação da realidade por um segmento social e tomando
emprestada (de forma modesta) a Teoria Crítica do filósofo alemão Theodor W.
Adorno (1903-1969), lançar crítica negativa às verdades estabelecidas em um
processo dialético que deveria ser constante e exaustivo, mas que podemos
fazer, por ora, de maneira breve. Para tal, basta um pouco de empatia e
disposição para refletir sobre pontos de vista diferentes. Assim, proponho
cinco grupos compostos por distintas questões, a saber:
i)
Será que a classe média sabe que está experimentando uma amostra pífia do medo
que os moradores da periferia vivem diariamente, provocado, inclusive, pela
própria PM? Que os mais afetados pelo movimento são os mais pobres, obrigados a
atravessar o fogo cruzado do acerto de contas entre diferentes grupos
criminosos? E se ela não sabe,
qual é a causa disso? Podemos culpar a desinformação produzida pelos veículos
tradicionais de mídia ou temos um problema social mais grave, que inclui outras
instâncias educativas e de formação cultural dentro de nossa sociedade?
ii)
Em meio aos discursos conservadores surge o discurso imperativo de que a PM é
indispensável, mas será que uma parte da solução para a violência que a classe
média está testemunhando nestes dias (reforçando: que existe no cotidiano dos
mais pobres) não é a desmilitarização da polícia? Ou, pensando na extinção e
desarticulação dos grupos criminosos, a legalização da produção, venda e consumo
da maconha (como, aliás, foi proposto recentemente pelo ministro do STF, Luís
Roberto Barroso)?
iii)
Quais fatores sociais justificam ou explicam o comportamento autoritário do
dito “cidadão de bem” que ao perceber a proximidade da violência decide levá-la
ao extremo como forma de superação?
iv)
É possível se solidarizar com os militares como companheiros da classe
trabalhadora (mesmo sabendo das condições precárias do trabalho) quando os
mesmos se reafirmam manifestação após manifestação (de professores,
estudantes...), com balas e muita porrada, como pertencentes a uma outra
categoria, que vive sob outro conjunto de leis e privilégios? Por outro lado, é
possível negar o escárnio com que o governo do estado trata o movimento
grevista (vide depoimento do Secretario de Segurança Pública, André Garcia, que
tratou o movimento da categoria como “teatrinho ridículo” em entrevista ao vivo
na TV Gazeta)? Ademais, faz sentido que outras categorias de trabalhadores
aproveitem o momento – como tem ocorrido – para elaborar discursos revanchistas
contra os policiais militares?
v)
Existe jornalismo crítico na imprensa tradicional do ES? Até quando a cifra vai
valer mais que a vida? Ou que o resultado do problema será mais importante que
a causa? Quem são os mortos nestes dias de greve? Por que não se discute a
segurança de forma mais ampla, para além da greve ou dos crimes? Falta
independência para discutir a omissão do governo? Qual o medo das pautas
progressistas?
São questões que
suscitam, certamente, mais perguntas do que respostas. E o exercício deve ser
este, de reflexão constante, para que não façamos como Ulisses em sua Odisseia
de retorno à Ilha de Ítaca, quando, para vencer as sereias, pede aos remadores
para ser amarrado ao mastro da embarcação de modo que atravessasse sem se
lançar ao mar e, ao mesmo tempo, pudesse contemplar o canto. Parece estranha a
leitura, mas a problematização que busco (também inspirada na filosofia de
Theodor W. Adorno) é ainda mais simples do que o relato breve e grosseiro que
faço da narrativa de Homero. De certa forma, Ulisses é a representação de um
setor da sociedade brasileira que deseja consumir o espetáculo da violência no
noticiário, mas prefere não se lançar ao mar (ou às últimas consequências) para
buscar uma solução ao problema, justificando sua postura com as amarras da
distância. A questão que se faz urgente é: até quando vamos fingir que as
sereias não podem nos alcançar?
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